A mais recente campanha de preservação urbana de Pequim, levada a cabo no último verão, dominou o cenário de lojas coloridas da Yonghegong, uma alameda que corre entre árvores de ambos os lados situada entre dois marcos da cidade: os templos de Confúcio e dos Lamas.
A mando da prefeitura, trabalhadores manejavam pés de cabra e britadeiras para arrancar beirais azulejados e colunas de madeira decoradas com lanternas vermelhas e bandeiras com orações tibetanas. Em seguida, subiam e pintavam paredes de tijolos onde antes se viam portas e janelas.
Yuan Hong, que há uma década abriu um salão de beleza próximo a Yonghegong em uma hutong, ruela tradicional e histórica da cidade, chegou ao local um dia bem cedo e encontrou operários demolindo a fachada de vidro de sua loja. "Posso lavar meu rosto primeiro? Vocês podem ir um pouco mais devagar?", pediu.
Leia também: 5 líderes para ficar de olho durante a cúpula do G20
Eles não podiam, ou não queriam. Enquanto ela seguia atendendo os clientes, cortando, lavando, tingindo e secando cabelos, os operários continuavam a empilhar um tijolo sobre o outro, bloqueando a entrada até que Hong se viu presa lá dentro. No fim do dia, só restava uma nova janela.
Quando o último andaime foi retirado de Yonghegong, mês passado, os edifícios estavam com o design próximo ao original que apresentavam mais ou menos no fim do século 19. O custo disso, no entanto, foi o fechamento de pelo menos uma dezena de lojas que costumavam vender incenso, joias, pinturas, esculturas e outros itens religiosos para os visitantes que regularmente apinhavam o lugar.
Por décadas, as autoridades de Pequim tiveram uma predileção por demolir os bairros históricos da cidade, pondo abaixo grandes extensões das labirínticas ruelas históricas. Agora, segundo elas, estão tentando restaurar o que restou. Como anunciado pelo prefeito de Pequim, Chen Jining, na última primavera: "O objetivo é restituir cuidadosamente cada canto histórico e cultural."
Leia também: “Crédito social”: a mais nova e assustadora ferramenta de repressão do Big Brother chinês
Especialistas em preservação, contudo, possuem opiniões ambivalentes quanto ao projeto. Muitos receberam bem as melhorias nos bairros antigos, lembrando que o governo também reformou os banheiros públicos, usados por quem vive nessas hutongs, cujas casas não contam com encanamento interno. Por outro lado, outros dizem que muito do trabalho é apenas de aparência, já que, em vez de tijolos, em muitos lugares, estão sendo instalados azulejos finos de cor cinza nas paredes externas. A estratégia pode até recriar a aparência histórica de casas e templos de hutongs, mas não os recupera.
O trabalho de restauração em Yonghegong faz parte de uma campanha de "emparedamento" de toda a cidade que já está em seu segundo ano e é responsável pelo fechamento de um grande número de mercados, cafés, bares, barbeiros e outros negócios que proliferaram durante a abertura abrupta da China ao capitalismo.
Como é característico do país, a recuperação histórica foi colocada em prática após decreto governamental, sem discussão pública do assunto e quase sem o aconselhamento de planejadores independentes e especialistas em preservação.
Hoje em dia, viver e trabalhar nas áreas afetadas é experimentar uma quase constante sensação de crise e incerteza, além de viver sob nuvens de poeira e em meio ao entulho. Avisos são afixados em prédios que, apenas alguns dias depois, já são dominados por operários. Enquanto marcava as obras já concluídas em um mapa, um supervisor em Yonghegong disse que o trabalho iria avançar "pedaço por pedaço" por todo o centro da cidade.
Outros avisos foram pregados em estabelecimentos em ruelas ao norte da Cidade Proibida, incluindo duas ruas, Gulou e Jiaodaokou, que ofereciam uma mistura similar de lojas e restaurantes que também atraíam uma multidão de moradores e turistas. "Não há possibilidade de negociação", relata a cabeleireira Yuan.
Funcionários da prefeitura não quiseram comentar o caso. É sabido, entretanto, que os trabalhadores mostram a residentes e comerciantes ordens escritas que deixam claro o desejo do governo de eliminar, das antigas hutongs, novos negócios ou reformas não autorizadas, incluindo aberturas nas paredes de tijolo cinza das casas que, tradicionalmente, guardam pátios internos, e a construção de um segundo andar em estruturas historicamente térreas.
O desenho básico desses bairros data do século 13, quando os fundadores mongóis da dinastia Yuan estabeleceram a estrutura da cidade com identidade tão característica quanto a paisagem da Cidade Proibida ou dos templos mais importantes. Em discurso proferido no outono de 2017, o prefeito destacou os bairros dentro do Segundo Anel Viário, que seguiam o padrão de paredes de cidades medievais. Estas, após cinco séculos de existência, foram demolidas em 1965, durante outra renovação urbana catastrófica projetada na era Mao.
Hu Xinyu, curador do Centro de Proteção da Herança Cultural de Pequim, defendeu a decisão no Instituto Courtyard, centro cultural localizado dentro de uma casa tradicional com pátio interno: "A cidade está reorganizando bairros onde o poder econômico e a falta de leis de zoneamento levaram a condições caóticas e possivelmente perigosas. Está ajudando a traçar limites; do contrário, Pequim se transformará em uma megalópole com mais e mais problemas."
Para proprietários de lojas como Yuan, clientes e residentes da região, o impacto vai ruir a estrutura da vida urbana. Enquanto Li Zonggao, 73, observa sentado na frente de casa, perto do salão de Yuan, operários construírem uma nova parede onde, até outubro, funcionavam três comércios conhecidos da vizinhança, ele pondera: "Este lugar é a Pequim verdadeira. Sou grato pelo cuidado da prefeitura, mas lamento perder pequenas lojas, como aquela em que costumava comprar meus cigarros. Não é mais conveniente comprá-los perto de onde moro?"
Na hutong onde ele mora e Yuan trabalha, muitos negócios foram fechados: uma loja de ferragens, um restaurante típico chinês, uma loja de plantas para casa, um comércio de frutas e vegetais gerenciado por uma alegre jovem, e a banca do mal-humorado que fazia um excelente jianbing (espécie de crepe servido no café da manhã). "Como as pessoas vão viver?," Yuan questiona.
Rosie Levine, bolsista que trabalhou com o Centro de Proteção da Herança Cultural de Pequim e recentemente defendeu sua tese sobre a campanha de "emparedamento", afirma que "acabar com os pequenos negócios era o propósito. Historicamente, a sociedade chinesa sempre encarou o comércio como uma força degradadora". Além disso, a ação forçou a saída de trabalhadores que tinham migrado de outras partes da China para a capital, ajudando o governo no seu objetivo de controlar a população de Pequim, que já beira os 22 milhões. Muitos comerciantes de pequenos estabelecimentos são pessoas que chegaram à cidade durante a transição para o capitalismo aspirando a melhorar de vida.
Outros atribuem a campanha ao presidente Xi Jinping, o primeiro líder comunista do país a ter sido criado em uma hutong de Pequim. Em 2014, ele passeou pelo bairro durante uma rara aparição pública, demonstrando nostalgia pelo local. Na ocasião, ele pronunciou: "Devemos proteger legados históricos e culturais como a nossa própria vida."
Pouquíssimas hutongs mantêm a aparência original. Em 1949, havia aproximadamente 3.300 delas; hoje, restam apenas 1.000, de acordo com uma pesquisa que Rose ajudou a organizar para o centro cultural de Pequim. Muitas das que sobraram foram alteradas de forma definitiva – pátios internos divididos mais de uma vez durante as sete décadas de abertura comunista.
"Se eles estivessem restaurando os pátios integralmente, seria ótimo. Mas isso que está acontecendo agora dificilmente dá para ser classificado como preservação histórica", aponta Rose.
The New York Times News Service/Syndicate – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.