A vida de Alexandria Ocasio-Cortez virou de ponta-cabeça em 26 de junho. Aos 28 anos, ela fez o improvável: derrotou, no 14º distrito de Nova York, o deputado Joseph Crowley nas eleições primárias do Partido Democrata. A vitória lhe garantiu a vaga na disputa por uma cadeira na Câmara de Representantes dos Estados Unidos – o equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil. A eleição, marcada para 6 de novembro, será disputada contra o republicano Anthony Pappas. Se vencer – e tudo a leva a crer que sim, já que o histórico do distrito correspondente a partes do Bronx e do Queens é predominantemente democrata –, Ocasio-Cortez será a mulher mais jovem a assumir um mandato no Capitólio.
A ascensão política de Ocasio-Cortez é simbólica sob vários aspectos. Filha de mãe porto-riquenha e de um arquiteto de origem humilde, ela nasceu no Bronx, onde 49% dos habitantes são hispânicos. Vive em um modesto apartamento de um quarto, como a maioria dos trabalhadores da região. Move-se pela cidade de metrô e, até fevereiro, era garçonete num restaurante de comida mexicana.
Mulher, jovem, proletária e latina: Ocasio-Cortez é praticamente um bastião das minorias. E foi valorizando essa condição que ela atraiu a preferência dos democratas do 14° distrito. Sua campanha, de baixo orçamento, privilegiou o apelo digital, embora não abrisse mão do corpo a corpo. Entre suas bandeiras estão o amplo acesso à educação superior, assistência médica universal, fortalecimento dos sindicatos e apoio a moradias populares e a imigrantes – uma agenda com clara inclinação social.
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Esses interesses vieram a reboque de sua participação como organizadora da pré-campanha do socialista Bernie Sanders, em 2016. Senador pelo estado de Vermont, ele concorreu à vaga democrata na corrida presidencial – apesar de não ser filiado à sigla oficialmente. Sanders não levou a vaga, mas os ideais progressistas derramaram-se sobre as estruturas do partido.
Desde então, comenta-se que os democratas estão, aos poucos, deixando para trás o posicionamento centrista adotado nas últimas décadas. E guinando à esquerda. A vitória de Ocasio-Cortez sobre Crowley, democrata tradicional com dez anos de Câmara, talvez seja a maior prova disso. “Ainda estou aceitando o fato de realizarmos, no nosso quintal, algo que ressoou muito além das minhas expectativas”, disse ela em entrevista recente à Interview Magazine. “Mas definitivamente parece surreal.”
Socialismo dentro da caixa
O frisson político causado por Ocasio-Cortez é um sintoma do que alguns analistas convencionaram chamar de “novo socialismo”. O movimento se caracteriza por defender as causas clássicas da esquerda, como diminuição da influência monetária, pleno emprego e igualdade de gênero, mas sem romper os limites de um regime democrático e liberal. “Os novos socialistas objetivam uma reconstrução da vida social e econômica em direção a mais segurança e menos poder arbitrário”, sintetizou Jedediah Purdy, professor de Direito na Duke University, ao portal Politico .
Essa corrente não advém necessariamente das alas radicais do Partido Democrata. Mas de organizações socialistas como a Democratic Socialists of America, ou DSA. Criada nos anos 1980, a entidade sempre se dedicou a enfatizar a educação política, por meio de teóricos e escritores como Michael Harrington e Barbara Ehrenreich. Ocasionalmente, o grupo endossou candidaturas democratas.
O perfil e a relevância da DSA, porém, mudaram de patamar com a campanha de Bernie Sanders. E sobretudo após a chegada do republicano Donald Trump à Casa Branca. De 2016 para cá, a organização cresceu 900%, chegando a 45 mil associados. A idade média dos integrantes, que ficava na casa dos 60 anos, caiu para 30. No mesmo período, segundo a DSA, o número de filiados eleitos pelo país saltou de cinco para 50 – Ocasio-Cortez está entre eles. Purdy acrescentou:
Esta é a maior colheita de candidatos socialistas autodeclarados em quase um século, não apenas em Nova York, mas em lugares como Virgínia e Pensilvânia.
Um levantamento recente da Gallup mostrou que 57% dos democratas têm uma visão positiva do socialismo, enquanto apenas 47% enxergam o capitalismo com bons olhos. “As visões do socialismo entre os democratas e os independentes de tendência democrática são particularmente importantes no atual ambiente político, porque muitos observadores afirmaram que o Partido Democrata está tendo uma orientação mais socialista”, escreveu Frank Newport, responsável pela pesquisa.
Sanders de saias
Alexandria Ocasio-Cortez morou no Bronx praticamente a vida toda. Só se afastou do bairro em duas oportunidades. A primeira foi durante o ensino médio, quando estudou numa escola do Condado de Westchester, a 40 quilômetros de casa. Com o auxílio de parentes, os pais juntaram dinheiro e custearam uma pensão para que ela pudesse frequentar uma instituição com melhores índices de ensino.
Aos 17 anos, após juntar economias e colher empréstimos com a família, mudou-se novamente para ingressar na Universidade de Boston, no estado de Massachusetts. Alexandria começou a frequentar as aulas de bioquímica, mas acabou se formando em economia e relações internacionais. O pai morreu em seu segundo ano de graduação.
A faculdade também marcou o início do envolvimento político. Ela estagiou no escritório do senador Edward M. Kennedy, democrata de Massachusetts, dedicando-se a questões de imigração.
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De volta ao Bronx, depois de formada, tornou-se ativista comunitária em defesa dos imigrantes e da educação infantil. Lançou-se editora de livros infantis e lecionou cursos de verão para alunos do ensino médio do Instituto Nacional Hispânico de Nova York. Mas as ocupações não rendiam dinheiro suficiente para viver com a mãe, que àquela altura trabalhava limpando casas e dirigindo um ônibus escolar. A necessidade de completar a renda familiar fez com que ela deixasse de lado planos profissionais para se dedicar a um emprego emergente. Daí que trabalhou no Flats Fix, o restaurante mexicano.
Após a derrota de Sanders para Hillary Clinton, nas primárias de 2016, alguns integrantes de campanha do socialista criaram uma organização chamada Brand New Congress (BNC) – algo como Congresso Novo em Folha, numa tradução livre. O objetivo era recrutar possíveis candidatos nos moldes de Sanders para concorrer à Câmara e ao Senado. Em dezembro daquele ano, uma das organizadoras do BNC ligou para Ocasio-Cortez para apresentar a ela o projeto. A ativista gostou do que ouviu e decidiu se arriscar. A partir de então, engajou-se na busca por voluntários e simpatizantes no 14° distrito, garantindo o apoio do movimento negro Black Lives Matter e, claro, dos socialistas da DSA.
A corrida congressista começou no ano seguinte e cresceu agora, em 2018. O desafio era superar um deputado com dez anos de mandato, forte candidato à reeleição – e também à presidência da casa, caso ganhasse as primárias. Ocasio-Cortez era latina; Crowley, branco. Ela tinha 28 anos; ele, o dobro. Ela andava de metrô; ele, de carro e motorista. A ativista construiu sua campanha em pequenas doações; Crowley recebia verbas do mercado imobiliário. Renovação versus continuidade.
A dicotomia ficou ainda mais evidente na estratégia para redes sociais. Enquanto Ocasio-Cortez comprou 180 anúncios para suas páginas oficiais do Facebook e do Instagram, tanto de publicações em inglês quanto em espanhol, Crowley impulsionou 110 anúncios, todos em inglês. Em um vídeo que acabaria viralizando, Ocasio-Cortez aparecia em situações triviais do cotidiano, falando diretamente para o espectador: “É hora de reconhecermos que nem todos os democratas são iguais”, dizia. “Um democrata que pega dinheiro corporativo, lucra com a execução de uma hipoteca, não mora aqui, não manda os filhos para as nossas escolas, não bebe a nossa água e nem respira o ar que respiramos não pode nos representar”.
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Além da forte presença digital, Ocasio-Cortez diz ter batido em mais de 120 mil portas, visitou praças e escolas do Bronx e do Queens. O esforço deu resultado. Quando as urnas das eleições primárias foram encerradas, a jovem de descendência latina havia recebido 57% dos votos. A atriz Cynthia Nixon, possível candidata do Partido Democrata ao governo do estado de Nova York, classificou o feito como uma conquista dos “democratas progressistas contra os democratas corporativos”.
Desde que venceu as primárias, Ocasio-Cortez virou a “nova Bernie Sanders”. Acompanhou correligionários nos estados do Kansas, Michigan e Havaí. Tem assumido o papel até mesmo de porta-voz do Partido Democrata em entrevistas para jornais e programas de rádio e TV. Nem sempre ela se mostra simpática aos convites, contudo.
O apresentador Ben Shapiro, por exemplo, que tem enorme apelo entre os conservadores americanos, chegou a oferecer US$ 10 mil para Ocasio-Cortez doar para caridade se participasse de um debate com ele. O convite foi rejeitado. Recentemente, ela foi acusada de excluir a imprensa de duas reuniões com moradores que eram abertas ao público. Entre os jornalistas, comentou-se que ela teria dificuldade de se adequar às regras do Capitólio, onde os repórteres andam livremente.
Esse tipo de rusga envolvendo Ocasio-Cortez tem irritado o alto-escalão do Partido Democrata, embora não mais do que a ideia de um novo socialismo tomando corpo entre seus quadros. De fato, alguns candidatos socialistas não tiveram o mesmo êxito que a turma de Ocasio-Cortez. Democratas tradicionais venceram em diversos lugares, como no Havaí, que terá Ed Case concorrendo novamente à Câmara, e em Michigan, onde Gretchen Whitmer venceu a primária governamental.
Este “novo socialismo”, em algum momento, poderá empurrar o partido – e o país – à esquerda? Para Nancy Pelosi, líder dos democratas na Câmara, não. “Talvez, o socialismo seja ascendente naquele distrito específico”, disse ela à imprensa, referindo-se às áreas de Nova York que elegeram Ocasio-Cortez. “Mas não aceito qualquer caracterização socialista no nosso partido”.
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