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China e Talibã

Como a China pretende ocupar o vácuo de poder deixado pelos EUA no Afeganistão

Representantes do grupo fundamentalista islâmico Talibã são recebidos pelo ministro de Relações Exteriores da China na cidade chinesa de Tianjin, 28 de julho (Foto: Ministério de Relações Exteriores da China)

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O cortejo entre China e Talibã continua. O porta-voz do grupo fundamentalista, Suhail Shaheen, disse nesta quinta-feira (19) que a China poderia contribuir com o desenvolvimento do Afeganistão no futuro. Do outro lado, o ministro das relações exteriores da China, Wang Yi, disse, no mesmo dia em um telefonema ao seu homólogo britânico Dominic Raab, que a comunidade internacional deveria apoiar a transição para um novo governo em vez de colocar mais pressão sobre o processo.

Oficialmente, a China não reconheceu o Talibã como o novo governante do Afeganistão, mas deu indicativos de que poderia fazê-lo em nome da estabilidade na região. Na segunda-feira, um dia depois que o grupo extremista tomou a capital, Cabul, o governo chinês disse que esperava continuar a desenvolver “relações amistosas e cooperativas com o Afeganistão”.

O principal interesse da China, neste momento, é manter a estabilidade no país. Há anos o país vem travando sua própria “guerra ao terror”, que acabou descambando para perseguição da minoria muçulmana uigur em Xinjiang.

Agora, o Partido Comunista da China teme que mais conflitos por poder no Afeganistão, após a saída dos Estados Unidos, possam representar uma ameaça direta à segurança nacional chinesa. Uma das preocupações é que o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, relacionado a grupos extremistas da província de Xinjiang, poderia usar o território afegão para planejar atentados contra a China. (Lembrando que China e Afeganistão dividem uma pequena fronteira de 70 quilômetros.)

No fim de julho, Wang recebeu uma delegação de nove representantes do Talibã, em Tianjin, para discutir questões de segurança. Na ocasião, a delegação talibã se comprometeu a "não permitir que ninguém use o solo afegão contra a China".

Domínio econômico

Embora a história tenha mostrado que a palavra do Talibã não vale muita coisa, a China parece estar apostando que, para o bem de sua segurança, sua melhor opção no momento é apoiar uma transição pacífica de governo para o grupo fundamentalista.

O apoio inicial da China ao Talibã, enquanto os Estados Unidos saem do país e tentam impedir que os militantes tenham acesso ao dinheiro do governo afegão, será levado em consideração pelo grupo fundamentalista caso ele tenha sucesso em estabelecer um regime de governo duradouro. Líderes talibãs já disseram que o Afeganistão está aberto para investimentos chineses – e esse é outro interesse da China no país vizinho.

O gigante asiático tem alguns negócios no Afeganistão, principalmente no setor de energia e mineração, já que mantinha uma relação diplomática e econômica com o governo do ex-presidente Ashraf Ghani. Mas, segundo analistas, a instabilidade do país era um impeditivo para que os chineses investissem mais lá. Se o Talibã conseguir efetivamente formar um governo, a China se encorajaria a enviar mais dinheiro ao Afeganistão, podendo se tornar o maior financiador da reconstrução do país.

O Afeganistão, apesar de ser uma das nações mais pobres do mundo, tem recursos minerais que interessam à China, como cobre, minerais de terras raras e lítio, altamente demandados para o desenvolvimento da indústria no século XXI. Recursos esses que foram pouco explorados até hoje devido à falta de infraestrutura e instabilidade no país.

Além disso, a localização do Afeganistão é estratégica, sendo uma passagem entre Oriente Médio e Ásia. Para a China, ter projetos de infraestrutura no país, em um cenário de estabilidade, seria importante para o Belt and Road Initiative (BRI), o programa global chinês de investimentos em infraestrutura.

Para o consultor em relações internacionais Cezar Roedel, este é o cenário mais provável que se desenha para o Afeganistão no momento. Ele explica que o Talibã precisa de financiamento para governar o Afeganistão, então vai abrir as portas para os investimentos chineses. A China, por sua vez, tende a empregar uma estratégia conhecida como “debt-trap diplomacy”, usando o endividamento do país com bancos chineses para influenciar decisões políticas no governo.

Apoio militar? Não neste momento

Seria dessa forma, pelas vias diplomática e econômica, que a China exerceria sua influência sobre o Afeganistão governado pelo Talibã. Não se espera que o PCCh coloque soldados chineses em território afegão – não neste momento –, correndo o risco de repetir erros cometidos pelos Estados Unidos ao longo das últimas duas décadas.

“É possível que a China desenvolva uma assistência de segurança para o regime do Talibã no futuro, mas não acredito que isso ocorrerá agora”, disse Laurel Miller, diretora do Programa Ásia do International Crisis Group, em entrevista ao podcast ChinaPower, do CSIS.

Segundo ela, a China será cautelosa ao tentar preencher o vácuo deixado pelos EUA e a Otan, usando, além da assistência financeira, sua influência no Paquistão – com quem tem uma relação comercial e militar importante – para impulsionar suas relações políticas com o grupo fundamentalista.

O futuro das relações entre China e Afeganistão ainda é difícil de prever. Existe ainda a possibilidade de que, no longo prazo – e considerando que a situação de segurança no país continue crítica –, o envolvimento entre as nações acabe gerando mais dor de cabeça para a China, que, na ausência dos EUA, terá que destinar recursos para garantir que os problemas do vizinho não respinguem em seu território.

A única certeza é que, neste momento, o governo chinês está marcando pontos na chamada "guerra fria 2.0" ao explorar midiaticamente a apressada – e vergonhosa – saída das tropas americanas do Afeganistão como um exemplo de que os Estados Unidos não são confiáveis.

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