O presidente chinês Xi Jinping é visto em um grande monitor enquanto fala na Praça Tiananmen durante a celebração do 100º aniversário da fundação do Partido Comunista Chinês, em Pequim, China, em 1º de julho de 2021| Foto: ROMAN PILIPEY/Agência EFE/Gazeta do povo
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Ao longo de 2020, ao mesmo tempo em que as divisões entre China e Estados Unidos se aprofundaram muito além das questões comerciais, também cresceu a percepção entre os chineses de que o sistema de governo americano e sua influência global estão em decadência.

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O grande número de americanos mortos na pandemia, a invasão do Capitólio em 6 de janeiro, e os protestos e tumultos por questões raciais foram catalisadores para o estabelecimento de uma narrativa que vem sendo construída pelo Partido Comunista da China – já há um bom tempo – de que os Estados Unidos estão deteriorando seu poder dentro e fora de casa.

Foi isso o que apontaram os pesquisadores Jude Blanchette e Seth G. Jones, do Centro para Estudos Internacionais e Estratégicos (CSIS), em uma recente análise de diversos textos publicados em chinês na imprensa. Eles identificaram três eixos principais que compõem esta narrativa:

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  • A democracia dos Estados Unidos e seu sistema político pararam de funcionar.
  • A concepção americana de "valores universais" apenas manteve o apelo global porque ela era apoiada pelo poder dos EUA, mas na medida que a força dos EUA diminui, o mesmo ocorre com os valores que eles promovem.
  • O mundo está se movendo em direção à multipolaridade; o Leste está crescendo, o Oeste está declinando.

Isso está longe de ser novidade na China. Mao Tse-tung escreveu, em 1956, que “quando vistos em uma perspectiva mais ampla, como um todo e de um ponto de vista de longo prazo, [os EUA] não têm apoio popular, suas políticas não são apreciadas pelo povo, porque o oprime e o explora”.

Embora o discurso anti-americano tenha sido moderado depois de Mao, com a inserção da China na economia global, a retórica de que o modelo dos EUA é insustentável passou a ser mais presente após a crise financeira de 2007, segundo os pesquisadores do CSIS. Ela deu munição para críticas sobre o capitalismo ocidental, ao mesmo tempo em que motivou a exaltação do modelo de capitalismo estatal da China. De acordo com Blanchette e Jones, a crise financeira e a construção da narrativa em torno dela tornou a China mais confiante no cenário internacional.

Os eventos que ocorreram no último ano – pandemia, protestos nos EUA e as acusações de fraude eleitoral por parte do ex-presidente Donald Trump – deram mais força à narrativa. Um exemplo: a frase "O Oriente está aumentando, o Ocidente está declinando" passou a ser muito mais frequente nas publicações em chinês a partir de 2020, segundo o levantamento do CSIS.

Invasão ao Capitólio

A invasão do Capitólio por apoiadores de Trump e as cenas de violência dentro e fora do prédio do Congresso foram retratadas por analistas chineses na imprensa do país como um sinal de que a democracia americana é instável e violenta.

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Em um artigo para o jornal estatal People’s Daily, o acadêmico Li Yunlong escreveu que “este violento ataque ao Congresso expôs o mito da ‘democracia americana’, provando que os Estados Unidos não são um Jardim do Éden democrático”. “Essa ‘democracia americana’ que incitou os manifestantes a atacar o Congresso e transmiti-la ao vivo para todo o mundo prova que as eleições podem não garantir a transferência pacífica do poder político”, escreveu ele em janeiro deste ano.

Em outro texto, Zhang Jian, diretor de um instituto de relações internacionais ligado ao governo chinês, apontou o que considera uma contradição da imprensa americana quando ela classifica “os desordeiros de Hong Kong de 'heróis da democracia'” enquanto chama “os apoiadores de Trump, que tomaram o Capitólio, de desordeiros”. Mais adiante ele conclui: “Os problemas sociais e políticos dos Estados Unidos estão profundamente arraigados, e o país pode não ser mais capaz de liderar o Ocidente no futuro, muito menos dominar o mundo”.

Pandemia

O grande número de mortos por Covid-19 nos EUA também foi considerado um sinal de fraqueza do sistema americano em comparação com o chinês – embora muitos analistas chineses varram para debaixo do tapete os erros do próprio governo durante a pandemia e a falta de transparência em relação aos dados e a origem da doença.

“O fraco desempenho do governo dos EUA em face da pandemia Covid-19 prova mais uma vez que a ‘democracia americana’ não pode levar a uma governança eficaz”, escreveu Yunlong. De acordo com os pesquisadores do CSIS,  a ideia de comparar os dados dos EUA e da China durante a pandemia se tornou central para a narrativa de Pequim, buscando “forjar uma nova estrutura para a legitimidade popular que se estende além da capacidade de supervisionar altas taxas de crescimento econômico”.

Em um artigo sobre a presidência de Trump, Wu Ximbo, reitor de uma universidade chinesa, escreveu que “o enorme fracasso de Trump em responder à Covid-19, graves conflitos raciais e sociais, polarização e confronto políticos sem esperança, disputas sem precedentes sobre o resultado das eleições gerais e assim por diante também criaram buracos no mito da superioridade da moral e das instituições americanas”.

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Valores americanos

Os valores defendidos pelos EUA, como a liberdade, democracia e direitos humanos, também estão sob ataque na narrativa chinesa. Isso, porque eles são vistos como uma ameaça ao sistema de governo chinês – os protestos de 2019 em Hong Kong podem servir como exemplo.

“Os valores defendidos pelos Estados Unidos não foram capazes de garantir bons efeitos econômicos e sociais, e seu modelo e influência no mundo caíram drasticamente”, escreveu Zhang em um artigo para o Guangming Daily. “A polarização entre ricos e pobres e a consolidação das classes nos Estados Unidos tornaram-se mais pronunciadas”, continuou. Obviamente Zhang não citou as desigualdades sociais de seu próprio país.

Para ele, “a razão pela qual os valores americanos têm sido capazes de dominar o mundo por muito tempo não é por causa de sua chamada universalidade, mas sim por causa da força dos Estados Unidos, especialmente suas proezas econômicas e tecnológicas”.

Excesso de confiança

De acordo com Jude Blanchette e Seth G. Jones, há cada vez menos espaço para que esta narrativa de declínio americano seja contestada na China, um país em que a imprensa é amplamente controlada pelo Estado.

Mas eles afirmam também que quanto mais essa visão se torna um dogma oficial, mais provável é que Pequim superestime o declínio dos EUA e tenha um excesso de confiança, o que pode levar a uma postura internacional mais confrontadora, o que já foi observado na diplomacia chinesa no último ano.

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“Uma China que superestima sua própria força ao mesmo tempo em que subestima a força dos Estados Unidos é uma combinação preocupante, pois pode levar Pequim a fazer cálculos errados em uma das várias áreas geopoliticamente importantes, sendo a mais preocupante a questão em relação ao estreito de Taiwan’, escreveram os pesquisadores.