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Em fevereiro, Pequim vai se tornar a primeira cidade da história a ter sediado tanto os Jogos Olímpicos de Inverno quanto os de Verão.
Terão se passado 13 anos e meio desde que a capital chinesa recebeu a Olimpíada de Verão quando a cerimônia de abertura do próximo dia 4 der a largada para as disputas de inverno, tempo suficiente para que a percepção sobre a China mudasse e também as pretensões políticas de Pequim ao organizar os maiores eventos poliesportivos do mundo.
Se o desejo de demonstrar soft power (poder por questões que vão além da força, o chamado hard power, como cultura e esportes) continua o mesmo, a postura chinesa agora tem menos a ver com o anseio de obter um lugar à mesa das grandes nações e mais com o desejo de dar as cartas na geopolítica mundial.
No livro “Esporte, poder e relações internacionais” (Fundação Alexandre de Gusmão, 2008), fruto de tese apresentada ao Instituto Rio Branco, o diplomata Douglas Wanderley de Vasconcellos descreveu que a China utiliza o esporte como ferramenta nas suas relações com outros países desde pelo menos a década de 1970, quando a “diplomacia do pingue-pongue” ajudou a restabelecer contatos políticos com os Estados Unidos.
Em 1979, a China se filiou ao Comitê Olímpico Internacional (COI) e na década seguinte, quando voltou a disputar os Jogos após ficar ausente desde 1952, tomou algumas atitudes pragmáticas com o mesmo objetivo de aproximação. Em 1980, aderiu ao boicote comandado pelos Estados Unidos à Olimpíada de Moscou e em 1988, contrariou o defendido pela Coreia do Norte para os Jogos de Verão de Seul.
Ao mesmo tempo, o país fez uma ampla difusão da prática esportiva, com o objetivo de se tornar uma potência olímpica (o que conseguiu: de 11º lugar no quadro de medalhas de Seul-1988, esteve entre os três países com mais ouros em todas as Olimpíadas de Verão desde Sydney-2000 e liderou em Pequim-2008), e também se preparou para sediar grandes eventos.
O ano de 2001, quando Pequim ganhou o direito de sediar os Jogos de Verão de 2008, foi também o ano em que a China, então a sexta economia do mundo (hoje é a segunda, e deverá ser a primeira antes do fim desta década), entrou na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Como Pequim-2008 era uma espécie de cartão de visitas para um reposicionamento da China na geopolítica mundial, na mesma linha do que a Coreia do Sul atingiu com os Jogos de 1988 em Seul, a ditadura comunista tentou mostrar uma faceta mais tolerante, dando certa liberdade para jornalistas estrangeiros e criando os infames “parques de protestos” durante o evento, para os quais manifestantes deveriam se inscrever antes, o que evidentemente não deu certo: os que se arriscaram retiraram as inscrições, tiveram permissão negada e/ou foram presos.
Hoje, correspondentes estrangeiros relatam perseguições e intimidações constantes, e a forte repressão aos protestos em Hong Kong entre 2019 e 2020, com a aplicação de uma severa lei de segurança nacional em seguida, dá pouca perspectiva de que vozes discordantes serão admitidas em fevereiro. Nem mesmo os risíveis parques de protestos foram cogitados.
A resposta em Hong Kong e a perseguição aos uigures e a outras minorias muçulmanas em Xinjiang são os principais argumentos para um boicote diplomático que os Estados Unidos e aliados farão contra os Jogos de Inverno de Pequim (atletas desses países ainda participarão das disputas, mas os respectivos governos não mandarão representantes à capital chinesa).
A ditadura chinesa manifestou desconforto diante desses boicotes, mas não vai fazer concessões para contornar a situação. Pelo contrário: está disposta a mostrar que seu jeito de fazer as coisas é um modelo a ser seguido.
No final do ano passado, em resposta a uma cúpula sobre democracia convocada pelo presidente americano, Joe Biden, para a qual não foi convidada (assim como a Rússia), Pequim divulgou um comunicado chamado “China: democracia que funciona”, na qual alegou que seu sistema político é democrático e superior ao do Ocidente.
Steven Lee Myers, chefe da sucursal do The New York Times em Pequim, destacou em artigo publicado no ano passado que, ao contrário do que ocorria antes da Olimpíada de 2008, “praticamente ninguém hoje acredita que a realização dos Jogos irá moderar o comportamento da China”.
“Naquela época, os líderes chineses pelo menos prometeram concessões às liberdades democráticas básicas para mostrar que seriam anfitriões dignos. O atual líder, Xi Jinping, está muito mais confiante, e não está nem inclinado nem compelido a fazer concessões. E a própria China não é mais uma potência capitalista emergente, mas a segunda maior economia do mundo, competindo cabeça a cabeça com os Estados Unidos pela influência global”, argumentou.
Jennifer Hsu, pesquisadora da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, destacou em artigo recente publicado no site The Conversation que “a China não se importa com o que o Ocidente pensa”, e que os Jogos de Inverno de Pequim serão mais uma demonstração de força, num momento em que o país busca aumentar sua influência geopolítica, do que uma abertura para o mundo.
“O modelo de desenvolvimento da China há muito atrai a admiração dos países africanos, principalmente por sua forma de capitalismo dirigido pelo Estado. Ao sediar sua segunda Olimpíada em menos de 20 anos, a China está reforçando essa mensagem para os países em desenvolvimento - que seu modelo de desenvolvimento funciona”, explicou. “A Olimpíada de 2008 revelou a ingenuidade da comunidade internacional: acreditar que o esporte pode trazer mudanças políticas.”