Em 1991, a Argentina embarcou em uma ambiciosa política de paridade cambial, conhecida como o Plano de Convertibilidade, sob a liderança do ex-presidente argentino Carlos Menem (1989-1999), que faleceu em 2021. A iniciativa buscava naquele momento conter uma hiperinflação acumulada que atingiu praticamente 5.000% ao ano em 1989.
“A Argentina vivia na década de 80 um período de hiperinflação, inclusive muito pior do que vive hoje. A situação realmente era muito grave e aí decidiu-se pela questão da convertibilidade”, disse em entrevista à Gazeta do Povo, Luiz Carlos Day Gama, professor do curso de Ciências Econômicas do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) de Minas Gerais.
O Plano de Convertibilidade instituía a paridade fixa do peso argentino em relação ao dólar americano - estabelecida em um para um. Inicialmente o plano trouxe benefícios palpáveis.
Os primeiros anos da primeira “dolarização” argentina, estabelecida por meio da paridade cambial, foram marcados pela queda da inflação, pelo crescimento econômico robusto, pelas melhorias nos indicadores sociais e pela inserção da Argentina no mercado global.
Contudo, o sucesso inicial da paridade cambial deu lugar a desafios significativos no longo prazo. No final da década de 1990, a Argentina passou a sofrer com a perda da competitividade de suas exportações, com a vulnerabilidade às crises financeiras internacionais e com a dependência das políticas monetárias dos Estados Unidos. Esses desafios, criados por causa da política de paridade cambial e da irresponsabilidade fiscal, tornaram-se obstáculos cruciais para o sucesso do plano de Menem.
“A paridade cambial do governo Menem nos anos 90 impactou negativamente a competitividade em geral da economia argentina, mas não pelo fato de ter havido a paridade de um para um, um peso, um dólar, mas sim porque faltou outras sustentações de política econômica”, explica o professor de Ciências Econômicas do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas (CCSA) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), Josilmar Cordenonssi, em entrevista concedida à Gazeta do Povo.
Segundo Cordenonssi, a sustentabilidade da paridade cambial adotada pela Argentina de Menem exigiria que sua inflação fosse, no mínimo, equivalente à dos Estados Unidos. Mas o que houve na época foi que a inflação do país sul-americano continuou acima da inflação americana.
“O problema principal da Argentina naquela época, e que continua sendo, é o excesso de gastos do governo e o excesso de demanda. [Esse problema] fez com que a inflação argentina continuasse crescendo mais do que a americana e acabou contribuindo para o fracasso do plano de paridade”, disse o professor.
O fracasso do plano de paridade cambial de Menem culminou em uma crise que atingiu seu ápice em 1999, quando a desvalorização do real no Brasil impactou severamente as exportações argentinas, conforme explicou a economista e diretora da consultoria Eco Go, Marina Dal Poggetto, à BBC.
"A Argentina deveria ter também desvalorizado sua moeda naquele mesmo ano, como fez o Brasil, mas não conseguiu devido ao regime rígido que estava em vigor”, disse Dal Poggetto.
Segundo uma reportagem da BBC, outras crises que estavam ocorrendo naquele momento, como a asiática e a russa, agravaram ainda mais a situação dos argentinos, que mais tarde passaram a experimentar quatro anos consecutivos de recessão, aumento do desemprego e da pobreza.
Em 2001, a situação tornou-se insustentável. O então governo argentino comandado pelo presidente Fernando de la Rúa (1999-2001) tentou levantar medidas de ajuste fiscal e renegociação da dívida externa, mas a confiança dos credores e da população foi irremediavelmente perdida. Restrições à retirada de dinheiro dos bancos, conhecidas como "corralito", provocaram uma revolta popular, culminando na renúncia de de la Rúa e na instabilidade política.
Em dezembro de 2001, o governo interino, liderado por Eduardo Duhalde (2002-2003), anunciou o fim da paridade cambial e permitiu a desvalorização do peso argentino. A moeda argentina desvalorizou-se rapidamente, chegando a valer um quarto do dólar em poucos meses. Essa medida resultou na maior moratória da história argentina, com a suspensão do pagamento da dívida externa de cerca de US$ 100 bilhões (R$ 503 milhões).
Passados mais de 20 anos, a Argentina encontra-se novamente mergulhada na hiperinflação e na crise econômica profunda, agravada pelas políticas de governo do peronista Alberto Fernández, que finaliza seu mandato em dezembro deste ano.
Javier Milei, candidato libertário à presidência da Argentina, que disputa o segundo turno das eleições presidenciais no dia 19 de novembro contra Sergio Massa, candidato do peronismo, defende que a dolarização da economia argentina resolveria, inicialmente, parte da grave crise econômica que assola o país neste momento.
Diferente do plano de Menem, que apenas “forçou” uma paridade do peso com o dólar americano, Milei quer adotar a moeda dos EUA como sendo a moeda oficial do país.
"Proponho a livre concorrência entre as moedas e a reforma do sistema financeiro. Assim, o mais provável é que os argentinos escolham o dólar e, aí, você dolariza [a economia do país]”, disse ele em uma entrevista para uma emissora argentina no começo deste ano.
Diferenças entre os planos
O professor de Relações Internacionais do Ibmec de São Paulo, Carlo Cauti, destacou as diferenças fundamentais entre a dolarização proposta por Milei e a política de paridade cambial do governo Menem.
Em entrevista à Gazeta do Povo, Cauti ressaltou que o descontrole das contas públicas e o gasto excessivo do governo naquela época tornaram a política da paridade cambial bastante insustentável.
“Ao imprimir mais moeda e fixar a obrigação de um dólar para cada peso, a Argentina enfrentou desafios cambiais”, disse Cauti.
Cauti contrasta a política do governo Menem com a proposta atual de dolarização defendida por Milei, explicando que a ideia do libertário funcionaria melhor porque ela “elimina o Banco Central e a capacidade do governo de imprimir dinheiro”.
“A dolarização [proposta por Milei] força a responsabilidade fiscal, pois o governo não poderá se endividar sem garantias de que existam investidores dispostos a comprar ativos em dólares”, afirmou o professor.
Segundo Cauti, a proposta de dolarização apresentada por Milei destaca a responsabilidade nos gastos públicos como elemento central, uma abordagem que, de acordo com o professor, era ausente durante o governo de Menem e a era da política de paridade cambial.
Cauti afirma que Milei vê a proposta de dolarização neste momento como “a única solução” para evitar a “persistente irresponsabilidade fiscal na política argentina”. O professor também enfatizou a necessidade de se “remover a máquina de dinheiro das mãos dos políticos”, o que poderia finalmente garantir uma gestão fiscal mais responsável no país sul-americano.
“A dolarização com certeza vai ser bem melhor do que a paridade cambial, porque a paridade cambial era uma insensatez econômica”, disse Cauti.
Efeitos negativos da paridade podem se repetir no plano de dolarização?
Para o professor Carlo Cauti, isso dificilmente pode acontecer. Ele pontua que o conceito de dolarização defendido por Milei é completamente diferente da proposta de paridade cambial de Carlos Menem, justamente porque a dolarização do libertário será precedida pela responsabilidade fiscal – o que evitará colapsos futuros - e parte da substituição por completo da moeda oficial do país.
Para Cauti, a proposta de dolarização de Milei tem grandes chances de obter sucesso e tirar a Argentina da atual crise econômica, já que ela está intrinsicamente ligada também à uma abertura comercial mais abrangente do país.
Segundo o professor, a Argentina vive atualmente “uma situação crítica”, marcada pela “má gestão pública, corrupção endêmica e falta de responsabilidade fiscal”. É por esse motivo que a dolarização é a “única alternativa viável” para resolver os atuais problemas econômicos do país neste momento.
Cauti também enxerga a proposta de Milei como uma resposta a “incapacidade histórica de outros líderes argentinos” em formular uma política econômica “racional”. Segundo ele, a incapacidade econômica e irresponsabilidade dos últimos governos ficou ainda mais evidenciada pelo desastre do atual governo peronista de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, que é caracterizado pela "alta inflação, pela rejeição popular, e por ter colocado uma parcela significativa da população argentina abaixo da linha da pobreza".
“Acredito que diversos setores seriam impactados positivamente pela dolarização. As camadas mais pobres da população, que sofrem consideravelmente com a inflação, veriam benefícios, assim como a classe média”, disse Cauti.