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Num país em que a grande imprensa é estatal e/ou alinhada ao governo, o caso do canal russo RT é especial. A emissora foi criada em 2005 com o objetivo de ser uma emissora mantida pelo Estado, mas com uma linha editorial independente, inclusive com sucursais e versões em língua local em outros países, a exemplo de outros canais públicos europeus. Porém, antes do final da década retrasada, a Russia Today (como era chamada até 2009) já havia se tornado uma máquina de propaganda de Vladimir Putin.
Agora, ela exerce o papel de espelhar a retórica agressiva do Kremlin durante a guerra da Ucrânia: descreve as tropas russas como “libertadoras” da região de Donbass, repete o discurso de que o objetivo da ação militar de Putin é “desnazificar” a ex-república soviética e veicula conteúdos como elogios à “modernização” da indústria de defesa russa e acusações de que Kiev seria responsável pelo ataque à estação de trem em Kramatorsk que matou dezenas de pessoas.
Poucos dias após a invasão, o apresentador Peter Lavelle, que trabalhava na versão americana da RT, disse no seu programa que a “ordem liberal” do Ocidente havia fracassado e uma intervenção russa na Ucrânia se tornou necessária.
No Twitter, acrescentou: “A situação na Ucrânia não é sobre 'democracia’. Os Estados Unidos e seus aliados da OTAN derrubaram o governo democraticamente eleito na Ucrânia em fevereiro de 2014. A situação agora na Ucrânia diz respeito ao colapso da ordem de segurança pan-europeia”.
O jornalista britânico de ascendência ucraniana Peter Pomerantsev, em entrevista ao podcast do site New Republic, explicou que a RT surgiu com o objetivo de oferecer um contraponto à “imagem da Rússia como um país de bêbados, estradas esburacadas e prisões”.
“Isso é perfeitamente legítimo. Era para veicular notícias sobre a Rússia. Mas, a partir de 2008, isso mudou muito e, após a invasão da Geórgia, [o canal] se tornou algo completamente diferente, uma ferramenta muito importante da guerra política russa”, explicou.
Em 2017, a RT foi obrigada a se registrar junto ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos como “agente estrangeira”, após agências de inteligência americanas apontarem em um relatório que a emissora era uma “máquina de propaganda estatal da Rússia”.
Editora-chefe fiel ao Kremlin
A postura da editora-chefe da RT, Margarita Simonyan, indica essa fidelidade ao Kremlin. Em 2018, quando Putin venceu a última eleição presidencial russa, ela chamou o presidente de “vozhd” (chefe), termo que era usado para se referir ao ditador Josef Stálin. À época, alegou que o novo triunfo de Putin era uma resposta ao Ocidente.
“Não queremos mais viver como vocês. Por 50 anos, clara e secretamente, queríamos viver como vocês, e nós não queremos mais isso. Nós não respeitamos mais vocês ou aqueles que vocês apoiam”, escreveu Simonyan no Twitter – por ironia, na adolescência, ela havia estudado nos Estados Unidos.
Após o início da “operação militar especial” de Putin na Ucrânia, a editora-chefe alegou que a RT é “uma arma para fazer a guerra” e que a resistência ucraniana à invasão é “insanidade coletiva”.
“Não é por acaso que os chamamos de nazistas. O que faz de você um nazista é sua natureza bestial, seu ódio bestial e sua vontade bestial de arrancar os olhos das crianças com base na nacionalidade”, atacou.
Com o Kremlin acirrando a perseguição à pequena fatia da imprensa que não corrobora sua versão oficial, Simonyan defendeu a censura na Rússia.
“Houve dois períodos em nossa história em que não havia ou quase não havia censura: o período de 1905 a 1917 e o período da Perestroika e os subsequentes anos 90. Nós sabemos como isso terminou. Nas duas vezes, terminou no colapso do país. Porque um grande Estado não pode existir sem controle sobre a informação”, afirmou a editora.
Bloqueada no Ocidente
Desde o início da guerra na Ucrânia, o Ocidente tem procurado evitar o acesso à emissora. Em março, a União Europeia suspendeu a agência estatal russa Sputnik e a RT nos países do bloco até que a Rússia cesse a agressão ao país vizinho.
“A manipulação sistemática de informações e a desinformação são aplicadas pelo Kremlin como uma ferramenta operacional em seu ataque à Ucrânia. Representam também uma ameaça significativa e direta à ordem e segurança públicas da União Europeia”, justificou Josep Borrell, alto representante de Relações Exteriores e Política de Segurança do bloco.
Também em março, o órgão regulador de mídia do Reino Unido, o Ofcom, revogou a licença da RT no país. No mesmo mês, a emissora cancelou por conta própria suas operações nos Estados Unidos, após ser banida pela DirecTV, uma das duas grandes operadoras de televisão paga que ofereciam o canal no país.
Na Europa, a emissora foi bloqueada em diversas plataformas, como a Roku, que fabrica aparelhos para acesso a serviços de streaming, as lojas de aplicativos do Google e da Apple, o YouTube e as redes sociais da Meta – em alguns casos, essa restrição também foi aplicada em outros continentes.