Em meio a veículos blindados e armamentos pesados, militantes do Estado Islâmico desfilam pelas ruas de Raqqa, na Síria, para celebrar a tomada de poder na região, em junho do ano passado| Foto: STRINGER

Semente radical é plantada nas relações pessoais em mesquitas, e pela internet

Quando a capacidade de 2 mil pessoas de uma das maiores mesquitas da Catalunha, a da cidade de Terrassa, é superada, o que costuma acontecer às sextas-feiras, seus fiéis rezam inclusive na calçada. Há dois anos, o imã dessa mesquita, respondeu a um processo judicial por incitar a violência à mulher e ensinar como bater sem deixar marcas. Parte da comunidade islâmica local o defendeu.

Neste contexto, o goiano Kaique Luan Ribeiro Guimarães, de família católica, que mora em Terrassa há cerca de dez anos, se converteu ao Islã e adotou um novo nome, o de Hakim. Há menos de um mês, aos 18 anos, foi preso na Bulgária, e espera extradição à Espanha, acusado de pretender se unir ao Estado Islâmico (EI), na Síria.

"A captação e a radicalização de jovens jihadistas se dá, basicamente, pela internet. Nas mesquitas, no entanto, costuma ser onde nascem as relações pessoais e os intercâmbios que acabam plantando a semente radical", diz Jofre Montoto, especialista em terrorismo islâmico.

O caso do brasileiro destoa do perfil dos jihadistas na Espanha. Até 2012, explica Fernando Reinares, pesquisador do Instituto Elcano, eram estrangeiros, que vinham de países como Argélia, Marrocos, Paquistão e Síria.

Nos últimos dois anos o jihadismo no país sofreu uma grande transformação: 70% dos detidos a partir de 2013 nasceram ali, quase todos filhos de imigrantes marroquinos. "Isso significa que eclodiu o jihadismo endógeno", adverte Reinares.

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Radicalização ocorre fora das capitais, em regiões com menos oportunidades

Na última semana, High Wycombe, a 50 km de Londres, voltou a ser notícia pelo tema da vez: a radicalização. O jovem Shabazz Suleman, 19 anos, ex-aluno da prestigiosa Royal School of Grammar, teria se juntado às forças do Estado Islâmico (EI) na Síria, de acordo com o próprio em entrevista ao jornal The Times.

Na conversa com o periódico britânico pela internet, ele comemorou o ataque ao Charlie Hebdo e avisou que havia outras células na Europa prontas para agir: "Há tantos irmãos apenas à espera de uma ordem para realizar ataques no Ocidente".

O Reino Unido é hoje um dos países que mais exporta homens para o EI. Estima-se em 500 o número de britânicos que se uniram ao contingente estimado em 1,5 mil estrangeiros lutando no Iraque e na Síria.

Para Katharine Brown, do departamento de Defesa de King’s College, a radicalização não acontece só nas capitais. High Wycombe, Birmingham, Portsmouth, Bristol e Cardiff acabaram entrando em evidência nos últimos anos por terem gerado jihadistas. Para Katherine, a explicação poderia estar no fato de essas localidades não terem os mesmos níveis de oportunidade e conexões de Londres.

Enquanto 35% dos autores de crimes ligados ao terrorismo estariam desempregados, confirmando o que dizem a maioria dos especialistas, que apontam a falta de oportunidades econômicas como um dos fatores de base para a radicalização, 33% teriam nível superior completo, o que vai de encontro com a teoria de que teriam menos escolaridade e menos acesso à educação.

Na França – palco dos ataques ao jornal satírico Charlie Hebdo e em uma mercearia judaica que chocaram a Europa e o mundo –, na Espanha, na Alemanha ou no Reino Unido, o roteiro se repete: muçulmanos com dificuldade de se integrarem, em um continente onde a perspectiva para jovens de todas as religiões já é difícil por causa de uma crise econômica sem fim, se deixam seduzir pelo canto da jihad, a guerra santa contra o Ocidente em nome do Islã.

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Abordados na internet ou em mesquitas, esses jovens, a maioria deles filhos de imigrantes, mas nascidos na própria Europa, se radicalizam e viajam à Síria e ao Iraque, principal palco atual da jihad, para lutar ao lado do Estado Islâmico (EI) ou de facções da Al-Qaeda, ou para treinar para voltar à Europa e praticar atentados como os que ocorreram em Paris.

Reportagem tenta explicar como acontece esse processo de radicalização desafiador aos governos europeus, que apesar de se engajarem na luta contra o EI no Iraque e de mudarem a legislação de seus países para tentar conter o fascínio da jihad sobre seus próprios cidadãos, parecem não encontrar respostas para evitar novos massacres como o do Charlie Hebdo.

Trilha para a radicalização se tornou mais complexa e sinuosa ao longo dos anos

Nos anos 1990, os franceses que partiam para combater no Afeganistão se resumiam a algumas dezenas. Um número apenas um pouco superior foi registrado na década seguinte.

Nos últimos anos, no entanto, os candidatos à jihad se tornaram milhares, muitos dispostos a morrer e, principalmente, matar pelo radicalismo religioso inflamado nas entranhas do Estado Islâmico, de grupos rebeldes na Síria ou de organizações terroristas como a Al-Qaeda do Iêmen.

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Amedy Coulibaly, Chérif e Saïd Kouachi eram anônimos franceses antes de aterrorizarem o país e entrarem para a história da barbárie terrorista, com 17 mortes em três dias. Jovem delinquente, Coulibaly mergulhou no banditismo comum. Os órfãos irmãos Kouachi, quando foram acolhidos entre 1994 e 2000 no centro educativo "Les Monedières", na pequenina cidade de Treignac, na região da Corrèze, gostavam de rap e de futebol.

A trilha para a jihad e a radicalização se tornou ao longo dos anos cada vez mais complexa e sinuosa, diz Myriam Beenraad, especialista em mundo árabe e muçulmano do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po). Para escrever seu ensaio "Iraque: a Revanche da História" – com lançamento previsto para março, na França –, ela pesquisou a célula parisiense "Buttes-Chaumont", de envio de jihadistas franceses para o Iraque, na qual atuaram Coulibaly e os irmãos Kouachi. Sua análise aponta quatro fatores principais de favorecimento da radicalização hoje no país: crise identitária, condição socioeconômica, dilema existencial e a prisão.

Participar de um grupo, ainda que terrorista, dá um sentido para a vida

O que motivou cerca de 400 jovens, quase todos nascidos na Alemanha, a abandonar família e emprego para se dedicar à jihad? Enquanto o governo acaba de lançar um pacote de medidas para combater os jihadistas made in Germany – entre elas o confisco da carteira de identidade –, pais, professores e sociólogos buscam uma explicação sobre os motivos que levaram esses jovens, a maioria homens, à decisão de dimensão tão dramática.

A jornalista Souad Mekhennet, coautora do livro Os Filhos da Jihad, entrevistou muitos jihadistas na Alemanha e na Síria, onde chegou a falar com islamistas alemães que lutam no grupo terrorista Estado Islâmico.

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"Os motivos são diversos, mas um dos principais é a falta de orientação. Participando de uma organização, mesmo que terrorista, eles descobrem um sentido para suas vidas", diz.

Heiner Keupp, que vem analisando o fenômeno há anos, afirma que as causas são tão diversas quanto o background socioeconômico dos novos jihadistas. Em comum, os islamistas dispostos à luta têm uma espécie de "sede de poder". Complexados pela falta de importância que acham que têm, eles passam a alimentar com a jihad a fantasia de poderosos. Uma forma deturpada do machismo também pode estar envolvida no fenômeno.

"Com o questionamento do papel de submissão das mulheres, o tradicional machismo entrou em crise, o que muitos homens consideram uma perda. Sobretudo os jovens muçulmanos sofrem com a redução do papel masculino", diz Keupp.