Pequim nunca conseguiu ter em Hong Kong a mesma influência que possui sobre Macau, região administrativa especial da China que também segue a política “um país, dois sistemas” e cuja sociedade tem um sentimento pró-Pequim relativamente forte. Desde que o território insular foi entregue do governo britânico à China, em 1997, as autoridades do Partido Comunista tentam interferir na política local para silenciar críticos e evitar que uma secessão, mas seus esforços sempre esbarraram em protestos.
Em 2003, por exemplo, houve uma tentativa de aprovar uma lei de segurança nacional, proposta pelo próprio governo de Hong Kong (pró-Pequim) e conforme era exigido pela miniconstituição da cidade semi-autônoma. Mas a população, preocupada com os efeitos que a lei antissubversão poderia ter sobre os direitos e liberdades civis, foi para as ruas aos milhares para contestar o projeto de lei, que acabou sendo engavetado.
Mas nos últimos anos, já no governo do presidente chinês Xi Jinping, as autoridades do Partido Comunista da China se mostraram mais dispostas a mudar esse cenário, pressionando autoridades em Hong Kong para que aprovassem leis que, de uma certa forma, aumentariam o poder do governo central na ilha. Veja como aconteceu esse avanço.
A interferência da China sobre Hong Kong
No ano passado houve a tentativa de passar uma lei de extradição que permitiria que os cidadãos honcongueses fossem levados a julgamento na China continental. A medida deu início aos grandes, e às vezes violentos, protestos de 2019, que obrigaram a chefe executiva de Hong Kong, Carrie Lam, a voltar atrás e arquivar o projeto.
O tiro saiu pela culatra porque a pauta deu força ao movimento pró-democracia na ilha, que conseguiu uma vitória das eleições distritais de novembro do ano passado, as únicas eleições diretas na ilha. A ampla participação da população foi vista como uma derrota para a facção pró-Pequim.
O Partido Comunista então enveredou para outras frentes, buscando acabar com os protestos - que diminuíram mas não pararam durante a pandemia de Covid-19. O governo central passou a pressionar os legisladores honcongueses a aprovar duas leis controversas: a criminalização do desrespeito ao hino nacional chinês e a legislação de segurança nacional (a segunda tentativa). E desta vez, os protestos não foram suficientes para barrar as intenções de Pequim.
Primeiro veio a aprovação da lei que criminaliza o desrespeito à Marcha dos Voluntários, que virou alvo de vaias e paródias como forma de protesto em Hong Kong, especialmente durante eventos esportivos.
Apesar do boicote da oposição, os legisladores pró-Pequim conseguiram garantir a maioria entre os 70 parlamentares. Como resultado, as crianças serão obrigadas a aprender a letra, a melodia e a história da composição e quem foi flagrado desrespeitando o hino nacional da China terá que pagar uma multa de até R$ 34 mil.
Dias depois, aconteceu o ápice da interferência da China em Hong Kong até agora: com uma manobra política, os próprios legisladores de Pequim aprovaram e o presidente Xi Jinping sancionou a nova lei de segurança nacional da cidade. Sem qualquer participação da sociedade de Hong Kong. Em questão de um mês o Partido Comunista conseguiu resolver o que vinha tentando havia anos passar pelo legislativo de Hong Kong.
O artigo 23 da Lei Básica de Hong Kong estabelece que o governo local deve promulgar sua própria lei de segurança nacional para proibir atos de "traição, secessão, sedição, subversão contra o governo popular central ou roubo de segredos de estado… e proibir organizações ou órgãos políticos da região de estabelecer laços com organizações ou órgãos políticos estrangeiros". Mas depois da fracassada tentativa em 2003, o governo de Hong Kong não tentou um novo projeto sobre o tema.
A preocupação de Pequim pela ausência das leis de segurança começou a aumentar com a deflagração de protestos pró-democracia de 2019. E vendo que Carrie Lam não conseguiria avançar com a pauta, o Partido Comunista da China resolveu tomar as rédeas da situação.
No fim de maio de 2020, o Congresso Nacional do Povo (CNP), o legislativo chinês, autorizou o Comitê Permanente do CNP a criar "leis relevantes para estabelecer um sistema legal sólido e um mecanismo de execução para salvaguardar a segurança nacional em Hong Kong".
Cerca de um mês depois, no último dia de junho de 2020, o comitê já tinha uma lei de segurança pronta para Hong Kong e a aprovou por consenso em 15 minutos. A nova legislação então foi sancionada pelo presidente chinês Xi Jinping e anexada à Lei Básica de Hong Kong, passando a vigorar em 1º de julho de 2020.
Trata-se da mudança mais radical no funcionamento de Hong Kong desde que o território foi devolvido à China pelo Reino Unido em 1997 e houve a determinação de que a ilha teria 50 anos de liberdade, seguindo um modelo de “um país, dois sistemas”. Não é exagero afirmar que a legislação, que gerou controvérsia na região, uma vez que o texto contém diversas disposições inconsistentes com o previsto na Lei Básica de Hong Kong, representa o fim da autonomia relativa que a ilha possuía há 23 anos.
Na prática, a lei acaba com a autonomia judicial de Hong Kong e prevê que "separatismo, subversão, terrorismo e secessão" são crimes puníveis com a prisão perpétua, sem especificá-los, porém. O texto também estabelece que o que está previsto nele prevalecerá em caso de inconsistência com as leis locais de Hong Kong, que suspeitos podem ser levados a julgamento na China continental, e que organizações estrangeiras, incluindo as de imprensa, devem fornecer às autoridades chinesas informações que envolvam o território de Hong Kong, entre outros pontos polêmicos.
Em 8 de julho, a China inaugurou o Escritório para Salvaguardar a Segurança Nacional em Hong Kong, uma agência controlada por Pequim que será responsável por garantir a aplicação da nova legislação e já é vista por críticos como um órgão de repressão.
Livros de parlamentares pró-democracia e ativistas foram removidos das bibliotecas públicas. O hino de protesto “Glória a Hong Kong” foi banido nas escolas.
A aprovação da lei já está gerando reações internacionais. Os Estados Unidos cogitam desvincular dólar-americano da moeda de Hong Kong. O secretário de Comércio do país, Wilbur Ross, afirmou, inclusive, na última quarta-feira (1°), que a lei é uma "evidente violação dos direitos humanos". Ross disse também que há uma boa chance de que as companhias norte-americanas que têm usado Hong Kong como sua sede asiática repensem a questão.
O Reino Unido, por sua vez, anunciou que vai oferecer a parte dos moradores de Hong Kong acesso mais fácil à cidadania britânica, enquanto a Austrália suspendeu seu tratado de extradição com o território para que os cerca de 10 mil residentes de Hong Kong no país com visto de estudante ou trabalho temporário possam prorrogá-lo por cinco anos, caminhando para a residência permanente ao fim desse período, para citar algumas manifestações internacionais.
O movimento pró-democracia enfraqueceu em Hong Kong. Mas apesar de tudo isso e da proibição de aglomerações por causa da pandemia de Covid-19, protestos em menor escala continuam acontecendo. Na tentativa de evitar a prisão por frases que possam ser consideradas subversivas pelo regime comunista, tornou-se comum que manifestantes empunhem cartazes em branco. Desde 1º de julho, alguns já foram presos, acusados de violar a nova lei, mas nenhuma sentença foi anunciada ainda.
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