O que dizer dos atuais conflitos políticos em um planeta de aparente uniformidade midiática global? No caso da Primavera Árabe, será que seu significado é o mesmo para quem viveu esses enfrentamentos, no contexto cultural e social daquelas sociedades, ou daqueles que julgam esses eventos de outra perspectiva de valores culturais e políticos, como por exemplo, o Ocidente?
No caso da América Latina, como referir-se a um sistema político ou a um regime de governo como o da Venezuela que, embora constitucional, tende a ser objeto de opiniões antagônicas? Esses juízos de opinião, é bom que se diga, são construídos por leituras e interpretações severas e dominantes, por uma opinião política que apresenta o chavismo e o continuísmo de Maduro como inimigos da liberdade de imprensa e do livre mercado.
Qual seria a maneira para se entender melhor o significado de determinados fenômenos sociais e políticos? Será emitindo juízos raivosos, a favor ou contra Nicolás Maduro ou Cristina Kirchner, ou contra os mascarados das manifestações no Brasil? A indiferença seria um critério adequado para o entendimento dos fenômenos políticos? Neste caso, supor que a situação do Paraguai seja boa ou desejável porque houve um impeachment de seu presidente encrenqueiro, cessando assim as más notícias sobre os antigos conflitos, impondo-se o bom senso democrático? Supor normal uma situação pelo fato de que sobre ela não se lance nenhuma reprovação da opinião pública seria um critério adequado para se julgar determinadas situações políticas? Assim, pelo fato de que nunca acontece nada contra os governantes dos Estados Unidos, seja por autorizarem invasões a países inimigos, ou por espionarem meio mundo, temos aqui um bom exemplo de juízo político? Por que determinados fenômenos se desmancham no ar enquanto outros persistem e se mantem em evidência? Mantem-se por si sós em evidência porque são mais importantes ou são mais importantes porque são considerados evidentes?
Na Idade Média, havia um debate filosófico entre monges nominalistas contra os tomistas que liam o mundo à luz dos ensinamentos da lógica aristotélica. Os primeiros diziam que não existia, por exemplo, uma ordem dos beneditinos; o que existia, sim, conforme seus argumentos contra o universalismo, eram padres que pertenciam àquela ordem. Talvez pudéssemos dizer o mesmo em relação à oposição venezuelana: não há uma oposição, mas opositores que estão descontentes com uma série de problemas existentes na Venezuela, tais como a violência e falta de segurança nas grandes cidades, o aumento da inflação e a escassez de produtos, somando-se à inexistência de mecanismos de tradução institucional para seus protestos.
A maneira de expressar esses protestos ocorre via manifestações que tendem à polarização, opondo-se à base social que dá suporte ao chavismo-madurismo, ou seja, a setores populares da periferia urbana, baixa classe média, segmentos de trabalhadores urbanos sindicalizados das empresas estatais principalmente, setores camponeses, um grande contingente de funcionários públicos, beneficiados pelo Estado. Os setores sociais da oposição representam grandes contingentes da classe média tradicional e alta, setores empresariais, comerciantes e proprietários agrícolas, uma parcela do poder judiciário e um setor de intelectuais conservadores.
O fiel da balança são as Forças Armadas que em alguma medida se mantêm fiéis ainda ao carisma histórico de seu líder, mas cuja ausência e deterioração da situação econômica e social pode rapidamente contaminar sua coesão.
Como costuma acontecer com a tradição da cultura golpista na América Latina, há setores sociais que buscam se inspirar na experiência fracassada de Carmona, de 2002, para continuar tentando solapar a ordem constitucional. Tudo é válido para alguns setores internos e externos para derrotar o projeto bolivariano. Não custa nada para esses setores da oposição combinar a tática do desgaste produzido pelos enfrentamentos nas ruas, com a tarefa de fragilizar as instituições que ainda se pautam pela norma constitucional.
Acusar o sistema político vigente na Venezuela de antidemocrático e até de ditatorial encontra eco em setores da mídia nacional e internacional que cumprem assim com sua função ideológica de afastar tentativas de governos estatizantes ou de caráter popular, contra os antigos fantasmas que tendem a ressuscitar. Resta perguntar a esses propagandistas quais desses fantasmas são os piores: os dos governos de caráter reformista-popular ou os dos sangrentos golpes de estado que repõem o retrocesso da desigualdade social e da indigência política.
Como é difícil prever como se darão as coisas daqui em diante, não custa nada projetar alguns cenários possíveis, talvez prováveis, cujos efeitos possam traduzir a atual onda de protestos em mecanismos político-institucionais.
O primeiro desses cenários é a oposição canalizar o descontentamento pela via eleitoral, mas não se tem muitas garantias de que isso funcione, pois o fenômeno do líder carismático não parece ser atributo apenas da situação (Chávez e Maduro), mas é também da oposição (Capriles e López). A disputa pela hegemonia se traduz na imagem de salvadores da pátria.
A aposta de Leopoldo López em "quanto maior a violência melhor para derrubar Maduro" pode abrir um caminho de polarização irreversível para a sociedade venezuelana, cujo desenlace é incerto se a coesão das Forças Armadas se mantiver do lado da ordem constituída ou pior ainda se a coesão for rompida, dando vazão a uma guerra civil ou a um golpe de estado não menos sangrento.
Dimas Floriani, sociólogo