Foi uma decisão que pegou muita gente de surpresa: analistas, políticos, mercado, eleitores. A senadora e ex-presidente argentina Cristina Fernández Kirchner, cotada como um dos principais nomes da corrida presidencial de 27 de outubro, anunciou que se candidataria à vice pela coligação Partido Justicialista/Unidad Ciudadana – algo que, à primeira vista, parece insensato, já que ela vinha liderando as pesquisas de intenção de voto, à frente inclusive do presidente Maurício Macri. Deve encabeçar a chapa kirchnerista o ex-chefe de gabinete de Néstor Kirchner, Alberto Fernández, que, apesar do mesmo sobrenome, não tem parentesco com a ex-presidente.
A decisão ocorre em um momento em que Cristina está sendo julgada em um processo que ficou conhecido na Argentina como “Vialidad”, no qual ela é acusada de fraudar licitações para direcionar 52 obras, que somam quase US$ 1 bilhão, para o empresário Lázaro Báez, no estado de Santa Cruz, onde os Kirchner começaram sua carreira política. Nesta terça-feira (21), ela sentou-se no banco dos réus pela primeira vez, de onde ouviu as acusações dos promotores. O julgamento, porém, deve se estender por cerca de um ano, com audiências semanais.
Isso explica, em parte, por que a ex-presidente resolveu sair dos holofotes da campanha eleitoral neste momento. Além do caso “Vialidad”, ela responde a 11 processos judiciais, inclusive o processo que investiga um suposto acobertamento dos autores do ataque à Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), em 1994, que matou 85 pessoas. O caso mais recente veio à tona na metade do ano passado, no qual ela é acusada de ser uma das líderes de um esquema de recebimento e distribuição de propinas entre empresários e políticos, que ficou conhecido internacionalmente como “Lava Jato argentina”. Não fosse o apoio dos colegas senadores que não querem que ela perca a imunidade parlamentar, Cristina, a essa altura, poderia estar presa preventivamente.
Ela alega que as acusações são efeitos de uma perseguição política, mas sabe do peso negativo que elas representam em uma corrida presidencial. Nas pesquisas, Cristina aparecia com cerca 35% da intenções, mas corria o risco de perder nas urnas. Sua viabilidade eleitoral, segundo Gabriel Kohlmann, da consultoria Prospectiva, já vinha sendo discutida devido à sua grande taxa de rejeição. “Uma parte importante da sociedade argentina já vem se posicionando contra o kirchnerismo justamente por causa da corrupção, então ela teria um teto eleitoral”, explica. Pesa à isso o fato de que Macri havia parado de cair nas pesquisas mais recentes.
Também haveria ganhos pessoais: assumindo como vice e consequentemente como presidente do Senado, como prevê a legislação argentina, Cristina garantiria imunidade parlamentar por mais tempo – seu cargo de senadora vai até 2023. Especula-se ainda que ela poderia receber um indulto de Alberto, caso ele chegue à Casa Rosada.
Aproximação com o peronismo
Outro fator complementa a equação que levou Cristina a anunciar a candidatura para a vice-presidência: colocar Alberto Fernández como cabeça de chapa poderia ajudar a coligação a romper o teto eleitoral de Cristina. O professor de Relações Internacionais da USP Vinícius Vieira lembra que Alberto é uma figura muito mais “palatável” aos eleitores de centro e ao cenário internacional, já que possui boas credenciais na área econômica, em um momento de crise aguda no país.
Ele também tem o potencial para abrir caminho para uma reaproximação entre kirchneristas e peronistas, que não querem ser associados a Cristina. Em seu primeiro dia de campanha, Alberto conversou com pelo menos oito governadores peronistas que romperam com a ex-presidente em busca de apoio na disputa eleitoral. Segundo o jornal argentino Clarín, ao menos seis governadores fizeram manifestações públicas de apoio à chapa Fernández-Fernández.
Neste momento, porém, não é possível prever se eles terão o suporte de políticos-chave como Sergio Massa, peronista fundador da Frente Renovadora que obteve mais de 5 milhões de votos nas eleições presidenciais de 2015, e Juan Schiaretti, o recém-reeleito governador da província de Córdoba, a segunda maior da Argentina. Por enquanto eles parecem estar mais inclinados a seguir com a coalizão Alternativa Federal, que representa uma opção à “grieta”, como os argentinos se referem à polarização entre kirchneristas e macristas.
Os prováveis candidatos da Alternativa Federal para as eleições primárias dos partidos são Massa e Juan Urtubey, governador de Salta. Roberto Lavagna, ex-ministro da Economia, confirmou nesta semana que será pré-candidato, mas está prestes a romper com o Alternativa Federal, por não querer concorrer nas primárias - quer ser indicado por consenso.
A decisão de Cristina acelerou os acordos políticos da coligação, que em breve deve anunciar a sua estratégia. De acordo com Vieira, considerando os processos judiciais contra Cristina e a crise econômica da Argentina sob o governo Macri, uma terceira via tem grandes chances de ganhar as eleições presidenciais.
A estratégia de Macri
A situação também pode mudar para a coalizão governista, o Cambiemos. Até então ele vinha fazendo campanha em cima da enorme rejeição à Cristina Kirchner, culpando-a pela crise econômica que o país está atravessando, o que em parte está correto, conforme Vieira, já que, durante o último mandato dela, especialmente, o governo estava gastando muito mais do que poderia, deixando uma bomba macroeconômica para seu sucessor.
Talvez esta estratégia não tenha a mesma força com Alberto como candidato à presidente, mas por enquanto ela continuará sendo usada pelos governistas. “Seria nossa autodestruição”, disse Macri sobre uma possível eleição de Cristina, após o anúncio de que ela concorreria como vice. A especulações de que Alberto seria um fantoche nas mãos da ex-presidente também podem reforçar a campanha de reeleição de Macri.
Nos últimos dias, o Cambiemos voltou a negar que tenha um plano B para a disputa presidencial, o qual colocaria a governadora de Buenos Aires, María Eugenia Vidal, como candidata à presidência, no lugar de Macri. A ideia agrada alguns setores da coalizão, mas poderia enterrar as chances de o Cambiemos continuar no comando da maior província argentina, que vai eleger um governador em outubro.
“No Cambiemos não há outro [candidato à presidência]. O presidente disse que será candidato à reeleição, Vidal disse que será candidata na província de Buenos Aires e Horacio [Rodríguez Larreta] seria candidato à reeleição na cidade de Buenos Aires”, disse o ministro do Interior, Rogelio Frigerio, nesta terça-feira (21). Kohlmann alerta, porém, que o desempenho do macrismo nas eleições nas províncias pode modificar esse posicionamento.
Nova reviravolta pode acontecer
O cenário pré-eleitoral que está se formando após a divulgação da chapa Fernández-Fernández pode mudar novamente, segundo o analista Gabriel Kohlmann. “O anúncio da candidatura de Alberto Fernández tem cara de que pode ser o pré-anúncio de um outro anúncio. Ele é um político de bastidor, muito experiente no setor público, participou do governo dos Kirchner, mas não tem experiência eleitoral relevante. O grosso da população não o conhece nas urnas. Por isso, acredito que outras movimentações são esperadas”.
Kohlmann disse que, embora ainda seja cedo para fazer tal constatação, uma das hipóteses que pode surgir é uma chapa presidencial peronista-kirchnerista, com Massa como candidato à presidente e Alberto Fernández como vice, por exemplo. “Pode ser uma tentativa de unificar o partido peronista (as alas anti e pró-Kirchner). Ainda é muito cedo para verificar se esse é um desenho viável, mas não me parece que o Fernández seja um nome de peso eleitoral agora”, concluiu.