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Os conflitos em curso tanto na Ucrânia quanto no Oriente Médio revelaram um aspecto preocupante da proliferação de armas pelo mundo: a capacidade de países sob sanções, como o Irã e a Coreia do Norte, de obter componentes eletrônicos e tecnologia ocidental para usar em seus mísseis e drones.
Esses equipamentos, muitos deles produzidos por empresas dos Estados Unidos e da Europa, foram encontrados em armas fornecidas pelos dois países à Rússia, que as utiliza contra as forças ucranianas e até alvos civis.
Segundo relatórios de organizações independentes, como o Conflict Armament Research (CAR) e o Instituto para Ciência e Segurança Internacional (ISIS), os mísseis e drones iranianos e norte-coreanos contêm peças e acessórios projetados ou fabricados por companhias sediadas na Áustria, Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, Japão, Suíça, China, entre outros. Muitos desses componentes são de uso civil, como motores, baterias, sensores e processadores, mas podem ser facilmente adaptados para fins militares, conforme as organizações explicaram.
“Esses países [Coreia do Norte e Irã] têm uma longa história de importação ilegal de tecnologia militar ocidental, especialmente da Europa, para desenvolver seus próprios sistemas de armas”, afirma um relatório do ISIS, publicado em outubro de 2022. O documento destaca também o papel da China em fornecer cópias de componentes ocidentais ao Irã, que os utiliza para fabricar e fornecer drones ao Exército russo.
O relatório do CAR, publicado neste mês, analisou um míssil balístico norte-coreano que caiu na cidade ucraniana de Kharkiv em janeiro de 2024. A análise apontou que 75% dos componentes eletrônicos da arma pertenciam a empresas localizadas nos Estados Unidos e 16% da Europa.
O míssil, que teria sido montado e enviado à Rússia depois do início da guerra, em 2022, mostra que a Coreia do Norte “desenvolveu uma rede de aquisição robusta capaz de contornar, sem detecção, os regimes de sanções que estão em vigor há quase duas décadas”, diz o texto.
Em seu documento, o CAR disse que estava trabalhando para tentar rastrear as empresas que poderiam estar por trás da fabricação desses componentes e como eles podem ter ido parar nas mãos de norte-coreanos e iranianos.
A CNN, em uma reportagem publicada em dezembro de 2022, revelou que o governo de Joe Biden havia criado uma força-tarefa para investigar como os componentes ocidentais estariam chegando às mãos do Irã e da Coreia do Norte. A força-tarefa envolvia várias agências do governo, como os departamentos de Defesa, Estado, Justiça, Comércio e Tesouro, e contava com o apoio do Conselho de Segurança Nacional. O objetivo era rastrear as cadeias de fornecimento, identificar os intermediários e as rotas de possíveis contrabandos, bem como aplicar sanções e medidas legais contra os responsáveis.
“Trabalhamos de perto com o setor privado dos EUA, assim como com os aliados e parceiros estrangeiros, nesses esforços”, disse um porta-voz do Departamento de Estado naquela época à CNN. Ele acrescentou que o governo americano estava “avaliando mais passos que podemos tomar em termos de controle de exportações para restringir o acesso do Irã a tecnologias sensíveis”.
Organizações como o CAR e o ISIS alertaram em seus relatórios para os riscos que a transferência de tecnologia ocidental para países sob sanções representa para a paz e a estabilidade global. Elas defendem um maior controle e fiscalização das exportações, uma maior cooperação internacional, bem como a responsabilização das empresas envolvidas.
“É preciso entender como as peças estrangeiras estão acabando nos drones iranianos. Governos e indústria devem trabalhar juntos para desmantelar as redes de aquisição do Irã para seus drones”, diz o relatório do ISIS de 2022.
Em entrevista à Gazeta do Povo, Eduardo Galvão, professor de Relações Internacionais do Ibmec Brasília, comentou sobre como o Irã e a Coreia do Norte podem estar agindo para conseguir ter acesso a componentes eletrônicos ocidentais usados em suas armas.
Segundo Galvão, ambos os países podem estar utilizando redes complexas, que envolvem países intermediários, para obter os componentes eletrônicos do Ocidente e tecnologia de ponta para seus programas armamentistas. Esses componentes, disse ele, podem estar sendo reexportados por meio de empresas de fachada, localizadas em jurisdições menos rigorosas quanto à aplicação de sanções, ou por países com laços mais amigáveis com o Irã e a Coreia do Norte.
“O comércio desses componentes críticos é facilitado por atores que operam nas sombras do sistema financeiro e comercial global. Empresas de fachada, muitas [delas] localizadas em jurisdições menos rigorosas quanto à aplicação de sanções, desempenham um papel central nesse processo. Além disso, países com laços mais amigáveis com o Irã e a Coreia do Norte, ou aqueles que buscam desafiar a hegemonia ocidental, podem estar oferecendo caminhos para que essas transações ocorram fora do radar”, explica o professor.
Galvão questionou a eficácia das sanções como ferramenta política e alertou para as implicações dessas descobertas nos conflitos regionais. Ele citou como exemplos a capacidade do Irã de fornecer apoio tecnológico avançado a grupos terroristas como o Hamas, no Oriente Médio, e a colaboração entre a Coreia do Norte e a Rússia, no contexto do conflito na Ucrânia.
“A capacidade do Irã e da Coreia do Norte de adquirir tecnologia ocidental apesar das sanções levanta dúvidas sobre a eficácia dessas medidas restritivas. Embora não indique uma ineficácia total, mostra que existem brechas significativas na rede de sanções globais. Esses países têm demonstrado criatividade e persistência para superar os obstáculos impostos, desafiando a comunidade internacional a repensar e fortalecer os mecanismos de controle”, disse Galvão.
Para o professor, a “transferência de tecnologia militar pode influenciar dinâmicas de guerra e alterar o equilíbrio de poder nas regiões afetadas”.
“As implicações dessas descobertas são preocupantes. No Oriente Médio, a capacidade do Irã de fornecer apoio tecnológico avançado a grupos como o Hamas pode alterar o equilíbrio de poder e agravar as tensões regionais. Da mesma forma, a suposta colaboração entre a Coreia do Norte e a Rússia, especialmente no contexto do conflito na Ucrânia, destaca como a transferência de tecnologia militar pode influenciar dinâmicas de guerra”, concluiu Galvão.