Em abril de 2018, um navio transportando US$ 3 milhões em carvão adentrou nas águas da Indonésia com seu transmissor de identificação desligado e sua bandeira escondida da vista.
Por causa de um aviso, a Marinha da Indonésia deteve o navio, que se identificou como o "Wise Honest", de Serra Leoa. Quando os inspetores subiram a bordo, porém, encontraram duas dúzias de membros da tripulação e documentos de registro indicando um país de origem diferente - a Coreia do Norte.
A interdição, detalhada em um relatório de 5 de março feito por monitores das sanções da Organização das Nações Unidas (ONU), faz parte de um aumento preocupante nas exportações de carvão da Coreia do Norte - exportações que violam as sanções da ONU e ajudam a financiar o programa de armas nucleares do ditador Kim Jong-un, segundo os monitores.
Pyongyang está se tornando mais ousada em sua evasão de sanções, em parte porque muitos países – e seus bancos, seguradoras e negociadores de commodities – há muito tempo não cumprem adequadamente as medidas, de acordo com especialistas em Coreia do Norte. E alguns analistas temem que sinais mistos da administração Trump possam comprometer ainda mais a aplicação das sanções globalmente.
"É anarquia", disse Hugh Griffiths, coordenador dos monitores da ONU, em uma entrevista. "Essas enormes lacunas na governança marítima e financeira proporcionarão ao chefe Kim uma linha de vida econômica por meses, se não anos por vir".
Embora Washington tenha tradicionalmente liderado o policiamento global das sanções da ONU e dos EUA, as recentes ofertas do presidente Donald Trump a Kim e sua ordem no mês passado de retirar as sanções do Departamento do Tesouro da Coreia contra a Coreia do Norte trazem "um tremendo senso de incerteza na comunidade global", disse Elizabeth Rosenberg, funcionária do Departamento de Sanções do Tesouro de 2009 a 2013.
A Casa Branca e o Departamento do Tesouro se recusaram a comentar. Trump este mês disse que não queria aumentar as sanções dos EUA "por causa do meu relacionamento com Kim Jong-un" e porque ele acreditava que "algo muito significativo vai acontecer" em suas conversas com Kim sobre a desnuclearização da península coreana.
Como atuam os navios fantasmas
A Coreia do Norte conduz seu comércio ilícito com uma frota de navios fantasmas que pintam nomes falsos em seus cascos, roubam números de identificação de outros navios e executam seus negócios passando as cargas de navio a navio em alto mar, a fim de evitar olhares indiscretos nos portos.
Os parceiros comerciais de Pyongyang incluem redes criminosas que conscientemente fecham os olhos para a lei de sanções, disse Griffiths. "Se eles virem que o carvão norte-coreano é mais barato de comprar porque é ilegal, há uma margem de lucro maior", disse ele. Outros comerciantes involuntariamente entram em contato com as transações porque não estão examinando seus negócios de perto o suficiente, explicou ele. Além das exportações de carvão, as importações ilegais de petróleo para a Coreia do Norte também estão em alta.
A maioria dos navios que negociam com Pyongyang navegam sob as chamadas bandeiras de conveniência, o que significa que estão registrados em países como Panamá, Togo e Dominica, que fornecem pouca supervisão. Mas embarcações e empresas em países mais desenvolvidos também estão sob suspeita.
No final de março, os departamentos do Tesouro e do Estado acrescentaram dois petroleiros da Coreia do Sul e Cingapura a uma lista de vigilância de embarcações que "acreditavam ter se envolvido" em comércio ilegal com a Coreia do Norte. E os monitores da ONU descobriram que uma empresa sul-coreana era a destinatária do carvão que estava sendo carregado no Wise Honest.
Autoridades de Cingapura disseram que estão investigando o petroleiro e que assumem "muito seriamente" suas obrigações de aplicar sanções. A Coreia do Sul disse que vai "conduzir uma investigação completa" sobre possíveis violações de sanções.
Como o Wise Honest burlou as sanções
No caso do Wise Honest, um vendedor norte-coreano chamado Jong Song-ho realizou reuniões na embaixada de Pyongyang em Jacarta, Indonésia, para organizar o carregamento. No final de 2017, ele apareceu em um desses encontros e foi apresentado a um comerciante de commodities indonésio chamado Hamid Ali.
Jong deu a ele um cartão de visita apresentando-se como presidente do Jinmyong Trading Group e do Jinmyong Joint Bank em Pyongyang – o último dos quais os EUA sancionaram em 2017.
No início de 2018, Ali e Jong se encontraram novamente em Jacarta e discutiram um "transbordo de carvão", segundo Ali contou aos monitores. Jong então conseguiu enviar US$ 760 mil para Ali, por meio de uma empresa chamada Huitong Minerals. O JPMorgan Chase ajudou a facilitar esse pagamento agindo como banco correspondente em transferências, de acordo com registros de transferência bancária obtidos pelos monitores.
Parte desse dinheiro foi um pagamento de comissão para ajudar a organizar a venda do carvão Wise Honest, Griffiths disse.
Ali não respondeu aos pedidos de comentários do Washington Post. Jong e a Huitong Minerals não foram encontrados para comentar.
Em 11 de março de 2018, um Estado membro da ONU capturou uma foto da Wise Honest sendo carregada com carvão em um porto em Nampo, na Coreia do Norte.
Depois que a Indonésia deteve o navio em abril de 2018, autoridades disseram aos monitores que uma empresa sul-coreana, a Enermax Korea, era o "destino final/destinatário" do carvão, segundo o relatório.
A Enermax disse aos monitores que "simplesmente recebeu uma oferta de carvão proveniente da Indonésia de alguém que parecia ser um corretor local na Indonésia". A empresa, porém, não respondeu aos pedidos do Post para comentários.
Como é o trabalho dos monitores
O Conselho de Segurança da ONU proibiu as exportações norte-coreanas de carvão – a maior fonte de receita externa do país – em agosto de 2017, depois que Pyongyang realizou vários lançamentos de mísseis. Logo depois, o Conselho de Segurança proibiu todas as transferências de carregamentos para navios norte-coreanos e restringiu severamente as importações de petróleo da Coreia do Norte, em parte para privar seus militares de combustível.
Griffiths e sua equipe de sete pessoas são os principais monitores de conformidade das sanções, trabalhando em uma "localização não revelada" perto da sede da ONU em Nova York – não revelada depois que ataques cibernéticos contra os monitores levantaram preocupações sobre sua segurança.
A equipe examina fotos e imagens de satélite – algumas fornecidas pelos Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul e Reino Unido – e bombardeia os parceiros comerciais de Pyongyang com e-mails exigindo que eles expliquem sua atividade.
"Não temos poder de intimação", lamenta Griffiths, um britânico que passou sua carreira investigando crimes internacionais em órgãos da ONU, da União Europeia e dos EUA. E o grupo lamentavelmente está com falta de pessoal para o tamanho da tarefa, contando com mesmo número de monitores que uma equipe da ONU que examina as sanções contra a Somália, apesar de ter cinco vezes mais restrições para rastrear.
Ainda assim, a equipe de Griffiths tem algumas ferramentas: pode recomendar que o Conselho de Segurança imponha sanções a empresas e navios que violem as regras, uma punição que pode prejudicar sua capacidade de negociar.
Algumas das explicações que os monitores recebem são exageradas. Depois que o petroleiro Shang Yuan Bao foi fotografado transferindo carga através de mangueiras para um navio norte-coreano em maio de 2018, Griffiths contatou uma empresa de gestão sediada em Taiwan, ligada ao navio. De acordo com o relatório, a empresa respondeu que usou as mangueiras para fornecer água potável ao navio norte-coreano, "com base na ajuda humanitária".
Dado que as mangueiras do navio são normalmente usadas para o petróleo, a explicação "não é credível", disse Griffiths. "Qualquer um que tenha tentado beber água contaminada com petróleo dirá a você, você automaticamente vomita", disse ele.
Jeitinho
Alguns navios continuam negociando mesmo depois que o Conselho de Segurança impõe sanções a eles.
Em março de 2018, a ONU sancionou um navio registrado na Dominica chamado Yuk Tung, juntamente com a empresa de Cingapura que o administrou, depois que ele negociou com um navio norte-coreano. Essa punição baniu o Yuk Tung de todos os portos do mundo e efetivamente proibiu que outros navios negociassem com ele.
Para continuar operando no Mar da China Oriental, o Yuk Tung pintou um novo nome e um número de identificação roubado em sua popa. Enquanto isso, o legítimo proprietário dessa identidade estava ancorado no Golfo da Guiné, a mais de 11 mil quilômetros de distância, de acordo com os monitores.
Essas táticas permitiram ao Yuk Tung se passar por Maika e receber US$ 5,7 milhões em petróleo em outubro de 2018 de um petroleiro de Cingapura controlado por uma das maiores comerciantes de commodities da região, a Hin Leong Trading, disse Griffiths. Um Estado membro da ONU disse à equipe de Griffiths que acreditava que o petróleo estava destinado à Coreia do Norte.
Os monitores disseram que a Hin Leong Trading, fundada pelo bilionário de Cingapura Lim Oon Kuin, cooperou com a investigação e parecia ser uma "parte involuntária" de uma transação ilícita.
Pouca disposição
Muitos países concordam que uma Coreia do Norte com armas nucleares representa uma grave ameaça à segurança global. Mas aplicar as sanções requer mais tempo e dinheiro do que muitos estão dispostos a gastar, disse Griffiths.
Apesar da interceptação do Wise Honest, a Indonésia desafiou recentemente as instruções dos monitores da ONU para apreender o carvão, permitindo que ele fosse transferido para outro navio que prontamente partiu para a Malásia. Griffiths disse que isso era uma "clara violação" das sanções e pediu que a Malásia investigue o caso. As autoridades indonésias e malaias não responderam imediatamente aos pedidos de comentários.
Parar o comércio ilícito de Pyongyang envolveria manter vigilância atenta nas embaixadas da Coreia do Norte e expulsar diplomatas que facilitem a evasão de sanções.
Também exigiria que os países impulsionassem a regulamentação de seguradoras, bancos e traders de commodities para garantir que eles analisem melhor os embarques e transações que apoiam, afirmam os monitores.