Um documento de identidade usado por cidadãos venezuelanos para acessar serviços sociais do governo e diversos outros benefícios é uma das ferramentas mais poderosas do regime de Maduro. Cada vez mais dependentes de alimentos e medicamentos subsidiados, em meio ao colapso econômico e crise humanitária promovidos pelo regime chavista, os venezuelanos precisam usar o Carnet de la Patria (Cartão da Pátria), que se tornou um poderoso meio para controle social e político.
Um estudo estima que cerca de 70% da população usa o cartão, segundo Benigno Alarcón, diretor do Centro de Estudos Políticos e de Governo da Universidade Católica Andrés Bello, na capital venezuelana, Caracas. “Principalmente em setores mais pobres e vulneráveis. Justamente porque são os que podem ser mais facilmente manipulados e pressionados com temas de alimentação e necessidade básica”, disse Alarcón à Gazeta do Povo.
“Na realidade, a principal função do cartão é manter um controle rigoroso sobre os milhões de funcionários do Estado e as milhões de pessoas que procuram assistência do governo, muitas das quais dependem dessa assistência para sobreviver”, afirmou Ryan Brading, pesquisador do Departamento de Estudos de Desenvolvimento da Universidade de Londres.
O Cartão da Pátria funciona um pouco como as “libretas de racionamiento” que eram usadas em Cuba. Sem ele, os venezuelanos não podem acessar serviços de saúde, votar, estudar em universidades ou obter os tão necessários alimentos subsidiados, que são oferecidos nos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP), em uma cesta que contém itens básicos como arroz, feijão, farinha e óleo.
Como a maioria dos Venezuelanos precisa se registrar nesse sistema, ele oferece um meio eficaz de controlar a população mais pobre e de garantir a sua obediência. Os dados dos titulares dos cartões são transmitidos e armazenados em servidores. Dessa forma, os programas sociais acabam ajudando a Venezuela a manter um Estado que monitora o comportamento dos cidadãos, semelhante ao descrito no romance 1984, do escritor britânico George Orwell.
Alarcón explica que as movimentações dos cartões são registradas em listas por membros do partido do governo, que depois podem ser usadas para mobilização eleitoral. “De alguma forma, eles sabem a preferência de cada eleitor, em quem votariam em momento determinado”, disse. Dessa forma, sabendo das preferências pessoais de quem pode votar, quando uma eleição está próxima, é possível ir até essas pessoas e fazer com que elas vão votar.
Outro fato que se soma à essa estratégia é a crença arraigada na população de que o voto secreto não existe, ou de que o governo sempre sabe como cada cidadão votou. Embora isso não seja verdade, a população acredita nessa informação, já que o governo não faz esforços para desmenti-la.
“Toda vez que as pessoas saem para votar, têm a convicção de que o voto não é secreto. Então elas acham que têm que votar sempre pelo governo, já que em princípio o governo vai ficar sabendo em quem votaram e isso pode ter consequências para elas”, afirma Alarcón. “Basicamente, é um trabalho de inteligência social muito sofisticado”.
Tecnologia chinesa
A tecnologia para esse sistema de monitoramento veio da China. Uma reportagem da Reuters revelou como a gigante de telecomunicações chinesa ZTE está no coração do Cartão da Pátria venezuelano. O diretor da unidade da ZTE em Caracas confirmou que a empresa vendeu servidores para a base de dados e estava desenvolvendo a aplicação de pagamentos móveis.
Críticos dizem que o Cartão da Pátria ilustra como a China, por meio de empresas aliadas ao Estado, como a ZTE, exporta tecnologia que pode ajudar governos aliados a rastrear, recompensar e punir cidadãos.
O secretário-geral do partido venezuelano Acción Democrática, Henry Ramos Allup, questionou a imposição do Cartão da Pátria como mecanismo de controle para acesso das políticas sociais. “O governo joga com a fome das pessoas ao exigir que elas tenham o Cartão da Pátria para conseguir alimentos e remédios”, criticou.
Em agosto passado, Maduro anunciou que os subsídios extraordinários do país para a gasolina e o diesel estariam disponíveis apenas para quem tivesse o Cartão da Pátria. Todos os outros teriam que pagar “preços internacionais” pelo que foi por muito tempo a gasolina mais barata do mundo, tão barata que era quase de graça.
Maduro também usou o sistema a seu favor durante as eleições presidenciais de 2018. Ele comprou votos ao fazer entrega de casas e usou o carnê da Pátria como moeda de troca. Antes da votação, diversos meios de comunicação reproduziram um discurso em que o ditador afirmou que “todos os que têm o carnê da pátria precisam votar, é dando que se recebe”. “Estou pensando em dar um prêmio ao povo da Venezuela que saia para votar nesse dia com o carnê da pátria”, continuou ele durante um comício no estado de Anzoátegui.
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No dia da votação, mais irregularidades. A rede de observadores nacionais comentou a presença de “pontos vermelhos” nas proximidades e até dentro dos centros de votação. Muitos relataram a exigência do carnê da Pátria por parte dos coordenadores do centro, presidentes de mesa e membros do partido PSUV. Além disso tudo, Maduro não permitiu que as eleições fossem acompanhadas por observadores internacionais, como é comum ocorrer em democracias.
“Pessoa não existente”
No dia das eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, órgão que passou a estar acima de todos os poderes públicos, Nicolás Maduro foi o primeiro a votar. Pouco depois das 6 da manhã de 30 de julho de 2017, o mandatário apresentou o seu Cartão da Pátria para verificar o seu voto, mas a seguinte mensagem apareceu no aparelho que fazia a leitura: “A pessoa não existe ou o cartão foi anulado”. O momento foi transmitido ao vivo pela televisão estatal VTV.