Ao invadir a Ucrânia, Vladimir Putin não está colocando em jogo apenas o prestígio da Rússia como potência militar. Além da economia de seu país já estar sofrendo um forte abalo, com uma queda de 25% no valor de sua moeda, o rublo, o próprio Putin corre o risco de ser preso se for apeado do poder, e ver o fim de seus dias sendo julgado no Tribunal Internacional de Haia por seus crimes.
O mandatário russo possui um longo histórico de violações de direitos humanos e até mesmo das regras das Convenções de Genebra (assinada por vários países, entre eles a Rússia), que estabelecem os direitos dos civis e os deveres dos militares em tempos de guerra. Logo que assumiu o poder como primeiro-ministro em 1999, Putin precisou lidar com as aspirações separatistas da Chechênia, o que ele fez com mão-de-ferro, fazendo uso da violência contra civis e lançando ataques aéreos contra Grozny, capital da ex-república soviética. Na época, a organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch afirmou que o exército russo “indiscriminada e desproporcionalmente bombardeou alvos civis”.
Em 2008, foi a vez de outra ex-república soviética sofrer com as ambições expansionistas de Putin. Sob o pretexto de proteger cidadãos russos que viviam na Ossétia do Sul e Abecásia, ambas parte da Geórgia, o governo russo invadiu as duas províncias, uma justificativa semelhante com a usada na semana passada ao invadir as regiões de Lugansk e Donetsk na Ucrânia. Na ocasião, ataques a alvos civis também foram registrados, contabilizando mais crimes de guerra contra Putin. Porém seu status como forte líder da Rússia fez com que o Ocidente respondesse timidamente.
A primeira invasão da Ucrânia
Em 2014, a Rússia invadiu e anexou a Crimeia, dando início a uma escalada de agressões que nunca foram rechaçadas pelas principais potências ocidentais com a devida veemência. Mesmo as sanções invocadas à época se mostraram insuficientes para deter o ex-agente da KGB — o serviço secreto da União Soviética — Vladimir Putin. E não faltaram motivos para tanto: nos territórios ocupados, as forças pró-Rússia fuzilaram e torturaram opositores em prisões improvisadas que funcionavam praticamente como campos de concentração.
O Tribunal Penal Internacional (International Criminal Court, ICC, na sigla em inglês) abriu em 2016 uma investigação sobre possíveis crimes de guerra cometidos na Geórgia em 2008 e acabou incluindo os mais recentes contra a Ucrânia na invasão de 2014. A conclusão foi de que há indícios claros de crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
A invasão iniciada na quinta-feira passada também foi condenada pela organização Anistia Internacional. “Os militares russos mostraram um desrespeito flagrante pelas vidas civis usando mísseis e outras armas explosivas em áreas densamente povoadas”, afirmou a secretária-geral da organização, Agnès Callamard. De acordo com a organização, a invasão foi marcada por ataques indiscriminados contra áreas civis, inclusive hospitais, o que constituem crime de guerra.
A Lituânia pediu nesta segunda-feira (28) para o Tribunal Penal Internacional investigar possíveis crimes de guerra cometidos pela Rússia e por Belarus, país que apóia a invasão, na Ucrânia. “O que Putin está fazendo é assassinato puro e simples, e espero que ele seja julgado em Haia”, disse Ingrida Simonyte, primeira-ministra da Lituânia, fazendo referência à cidade sede do ICC, na Holanda.
Nesta segunda-feira (28), Karim Khan, promotor do Tribunal Penal Internacional, anunciou que vai abrir uma investigação sobre a atual situação na Ucrânia. "Estou convencido de que há uma base razoável para acreditar que tanto supostos crimes de guerra quanto crimes contra a humanidade foram cometidos na Ucrânia", afirmou, em nota, o promotor.
As chances de Vladimir Putin sentar no banco dos réus em Haia, porém, são muito pequenas. Nem a Rússia nem a Ucrânia fazem parte dos 123 países-membros do ICC. A Rússia chegou a abrir negociações para fazer parte do ICC, mas desistiu em 2016. A única maneira do Tribunal Penal Internacional ter jurisdição sobre as agressões russas seria se as Nações Unidas o chamassem para investigar, o que é impossível de acontecer no momento, uma vez que a Rússia é um dos cinco países membros-permanentes do Conselho de Segurança da ONU, e com poder de veto.
Leis internacionais
Ao invadir a Ucrânia, a Rússia foi contra a Carta das Nações Unidas, documento que lançou as bases da organização em 1945: “Todos os membros devem abster-se em suas relações internacionais da ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado.”
Evidentemente isso não quer dizer que a Rússia ou Putin individualmente vão sofrer punições. Em 2003, quando Rússia e China vetaram a invasão do Iraque, os Estados Unidos e o Reino Unido agiram de forma unilateral para tirar Saddam Hussein do poder. Ou seja, há precedentes para o que a Rússia está fazendo, embora enquanto EUA e Reino Unido agiram contra um ditador sanguinário, a Rússia invadiu um país democrático e com um presidente eleito pelo povo numa eleição limpa, vencendo com 73% dos votos. Uma das alegações de Putin é que está “desnazificando” a Ucrânia. Além da afirmação ser totalmente infundada, é bom lembrar que o presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, é judeu.
Mesmo em face dessas agressões e da quebra da própria carta da ONU, a Rússia não pode ser retirada do Conselho de Segurança. Mesmo que França, Reino Unidos, Estados Unidos e a China concordassem entre si com a expulsão, a própria Rússia teria que votar contra si mesma — desnecessário dizer que isso está fora de cogitação.
Resta a possibilidade de Putin ser levado ao Tribunal Penal Internacional pelos ataques intencionais a alvos civis, como já aconteceu antes na Chechênia e na Geórgia e agora se repete na Ucrânia, com mísseis atingindo prédios residenciais em Kiev. Para isso, Putin teria que ser preso e enviado para Haia. Para isso acontecer, não só ele, mas toda a cadeia de comando militar russa precisaria cair. Algo que parece muito improvável a curto e médio prazo. A longo prazo? Ainda é extremamente difícil, mas aqui já cabe um “talvez”.
Pelo menos dois chefes de estado que promoveram assassinatos em massa caíram nas garras do ICC. Em 1998, o ex-ditador chileno Augusto Pinochet foi preso em Londres graças a um mandado expedido pela Espanha. Ele só escapou do julgamento porque, aos 83 anos, tinha uma saúde frágil.
O outro foi Slobodan Milosevic, presidente da Sérvia entre 1989 e 1997 e da Iugoslávia entre 1997 e 2000. Antes popular e poderoso, em 2000 renunciou à presidência devido às manifestações contra o seu governo, acusado de corrupção, perseguição a opositores e à imprensa independente. Seis meses após a renúncia, foi preso pelas autoridades de seu próprio país. Foi enviado a Haia para ser julgado pelos crimes cometidos durante os confrontos com a Croácia, Kosovo e Bósnia, incluindo limpeza étnica, genocídio e quebras das Convenções de Genebra. Em 11 de março de 2006, foi encontrado morto em sua cela, em Haia.
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