Em meio a tantas polêmicas que envolvem as eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos, como a pandemia do novo coronavírus e a votação por correspondência, está o debate sobre a composição da Suprema Corte do país. A menos de dois meses do pleito, no fim de setembro, Donald Trump, presidente do país e candidato à reeleição, anunciou a juíza Amy Coney Barrett para ocupar a vaga aberta com a morte de Ruth Bader Ginsburg.
Para o Partido Democrata, o correto seria esperar o desfecho das eleições para que o próximo presidente, seja Trump ou Joe Biden, fizesse a indicação, vez que o processo eleitoral já está em andamento. Nos EUA, é permitido votar antecipadamente, o que já foi feito por milhões de eleitores até o momento.
Fora isso, parte da oposição tem levantado a possibilidade de aumentar o número de assentos no mais alto tribunal norte-americano, que no momento é de nove. Apesar de Biden já ter afirmado que se opõe à medida, recentemente preferiu evitar esclarecer seu posicionamento sobre o assunto. A justificativa dos democratas é de que a Constituição dos Estados Unidos não define o número de ministros (ou “juízes associados”, como se diz por lá). A manobra poderia ajudar o Partido Democrata, caso seu candidato seja eleito, a recuperar o domínio da Corte – se Barrett for mesmo confirmada, haverá uma maioria conservadora bem clara de seis contra três.
Se o Partido Democrata realmente levar esse plano adiante, essa não será a primeira vez que um nome ligado à legenda tentará fazer uma reforma desse gênero. Há 83 anos, na segunda metade da década de 1930, um democrata bastante famoso já tentou algo similar. Trata-se de Franklin Delano Roosevelt, também conhecido como FDR, que ocupou a presidência dos EUA durante boa parte da Grande Depressão, crise econômica que assolou o país no século passado.
A Suprema Corte foi uma das principais preocupações internas de FDR, especialmente durante seu segundo mandato (ele foi eleito para três e morreu enquanto cumpria o terceiro). O estopim para a “guerra” declarada pelo democrata contra o tribunal ocorreu em 1935, quando o National Industrial Recovery Act (Nira, na sigla em inglês) de 1933 foi declarado inconstitucional pela Corte. A lei autorizava o presidente a regulamentar a indústria em relação a salários e preços justos a fim de estimular a recuperação econômica.
O plano
No dia 5 de fevereiro de 1937, o então presidente norte-americano pegou a todos de surpresa ao anunciar um plano a fim de aumentar para até 15 juízes a composição do tribunal. A justificativa oficial era torná-lo mais “eficiente”, enquanto críticos não demoraram a alegar que a proposta de Roosevelt visava “empacotar” a Corte e neutralizar os magistrados que eram hostis às propostas ligadas ao New Deal, conjunto de programas desenvolvidos na gestão de FDR para reverter as enormes perdas sociais e econômicas registradas após a quebra da Bolsa de Valores em 1929.
O argumento dos juízes para derrubar essas legislações era de que elas concediam ao Poder Executivo e ao Governo Federal uma autoridade exacerbada, que ultrapassava o previsto na Constituição do país.
No Judicial Procedures Reform Bill of 1937, Roosevelt propôs o seguinte: para cada juiz com mais de 70 anos e seis meses que não optasse pela aposentadoria, o presidente do país nomearia uma espécie de “juiz assistente”, até um máximo de seis, que também teria direito de voto. É importante lembrar que, ao contrário do que ocorre no Brasil, quando os magistrados do Supremo Tribunal Federal (STF) devem se aposentar aos 75 anos, nos EUA o cargo é vitalício – o jurista até pode se aposentar antes, se assim desejar, mas não é obrigado. Necessário ressaltar, também, que a Suprema Corte dessa época era a mais velha da história.
“Esse meu plano não é um ataque ao tribunal; ele procura restaurar a Corte ao seu lugar legítimo e histórico em nosso sistema de governo constitucional e fazer com que a Corte retome sua tarefa de construir, sobre a Constituição, um ‘sistema de lei vivo’”, disse Roosevelt na ocasião, que complementou que era necessária uma maior quantidade de juízes para lidar com o número elevado de casos que chegavam à Suprema Corte.
No mesmo sentido o Procurador-Geral da gestão Roosevelt, Homer Cummings, no cargo entre 1933 e 1939, disse que o objetivo do governo era ter um Judiciário independente, mas, ao mesmo tempo, um Judiciário que permitisse ao país caminhar para a frente.
Desfecho
Apesar de um ano antes, no pleito presidencial de 1936, ter sido reeleito com maioria considerável dos votos (60,8%) e de a maioria do Senado dos EUA à época ser democrata, Roosevelt não teve o apoio da população, do Congresso e de seu próprio partido quanto à proposta de reforma judicial. E em junho de 1937, a Comissão do Senado dos Estados Unidos sobre o Judiciário enviou um relatório à referida casa parlamentar no qual não recomendava a aprovação da proposta.
“O projeto de lei é uma invasão ao Poder Judiciário como nunca se tentou antes neste país... É essencial para a continuidade de nossa democracia constitucional que o Judiciário seja totalmente independente tanto do Executivo quanto do Legislativo (...). É uma medida que deveria ser rejeitada de forma tão enfática que um paralelo nunca mais será apresentado aos representantes livres do povo livre da América”, trazia o texto.
Mesmo vendo sua proposta ser rechaçada, FDR acabou, de alguma forma, vencendo. Isso porque a partir do caso West Coast Hotel Co. v. Parrish, cuja discussão foi contemporânea aos debates sobre a reforma judicial, a Suprema Corte começou a superar as decisões que eram contrárias ao New Deal. A mudança de orientação do juiz Owen Roberts, que era considerado um swing voter – isto é, um juiz moderado que ora vota de forma mais progressista, ora de forma mais conservadora –, foi decisiva nesse sentido.
Além disso, ainda em 1937, o juiz conservador Willis Van Devanter decidiu se aposentar, abrindo a primeira oportunidade para Roosevelt indicar um juiz ao tribunal. Entre 1937 e 1943, FDR acabou indicando nove juristas à Corte, sendo que todos foram confirmados no cargo. Isso significa que Roosevelt só indicou menos ministros à Suprema Corte do que o primeiro presidente dos Estados Unidos, George Washington.
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