Saudado à direita e vilanizado à esquerda, elogiado pelo crescimento econômico que ajudou a promover nos últimos anos e criticado por uma agenda ultranacionalista, o primeiro-ministro Viktor Orbán ajudou a colocar a Hungria no mapa da política contemporânea. Considerado por alguns analistas o grande expoente conservador da Europa atual, o controverso líder húngaro já havia governado o país entre 1998 e 2002, mas só voltou ao poder após renovar seu discurso: com uma retórica de defesa da nação e das tradições e um posicionamento anti-imigração que respondeu aos temores quanto às caravanas de refugiados que cruzavam o país vindas do Oriente Médio, Orbán consolidou sua posição através de reformas legais e eleitorais que lhe deram um poder quase inabalável sobre o Parlamento, a Justiça e a mídia – e, com bons resultados econômicos, manteve altos índices de popularidade.
À frente do Fidesz, um partido criado em 1988 por jovens liberais perseguidos pelo regime comunista, Orbán hoje controla mais de dois terços do Parlamento e se tornou o líder mais poderoso de seu país desde a queda da Cortina de Ferro, tendo reescrito a Constituição e nomeado a maior parte da atual Suprema Corte. Inimigo de George Soros, crítico do politicamente correto e mantendo um discurso economicamente liberal, tornou-se uma inspiração para grupos políticos conservadores ao redor do mundo – incluindo a equipe que cerca o presidente Jair Bolsonaro. Mas, afinal, como Orbán tornou-se o que é hoje?
A ascensão
Antes das sucessivas reeleições que vem acumulando desde o início desta década, Viktor Orbán já havia governado o país na virada do século. Seu mandato inaugural, que se estendeu entre 1998 e 2002, não foi marcado por posicionamentos radicais ou controvérsias semelhantes às atuais. Ao contrário, na época Orbán deixou o poder com a imagem de um conservador moderado, não muito diferente de seus congêneres na Europa Ocidental, e alguém que havia ajudado a conduzir a modernização do país para cumprir os requisitos de entrada na União Europeia (a admissão foi formalizada durante o mandato de seu sucessor, em 1º de maio de 2004). Também saiu do poder, no entanto, com a figura de alguém que havia sofrido a primeira derrota para os socialistas em um país que poucos anos antes ainda vivia sob a influência soviética.
A queda nas eleições de 2002 veio com uma margem de apenas 1% (cerca de 60 mil votos), mas foi o suficiente para colocar o oposicionista Péter Medgyessy, um independente aliado ao Partido Socialista, no cargo mais alto da Hungria. Um novo fracasso na corrida eleitoral de 2006 ajudou a acelerar a transformação do ex-primeiro-ministro no ator político que é hoje. Duplamente derrotado, Orbán aproximou-se do oligarca Árpád Habony, que desde então comanda a estratégia de relações públicas do premiê, embora não tenha cargo oficial. Com Habony ao seu lado, radicalizou o discurso, mudou a maneira de se vestir e a forma com que se comunicava com o eleitorado. Devia “criar uma nova imagem de si mesmo, e falar e agir como um húngaro comum”, relatou uma fonte próxima ao governo em entrevista à BBC.
As eleições de 2010 deram ao Fidesz a combinação de fatores ideal para retornar ao poder. Com a Hungria mergulhada na crise econômica internacional e a crescente insatisfação com os socialistas que estavam no poder no momento em que a depressão estourou, a oposição se colocava em posição de reconquistar a velha maioria. Um ano antes, em uma reunião a portas fechadas, Orbán conclamou seu partido a se unir para formar uma força capaz de governar a Hungria, no mínimo, pelas duas décadas seguintes. O projeto de poder vem dando certo: se cumprir até o fim seu terceiro mandato consecutivo, previsto para acabar em 2022, terá garantido pelo menos doze anos no poder.
A vitória acachapante de 2010, que deu mais de dois terços dos assentos parlamentares ao Fidesz, também garantiu a Orbán as ferramentas para facilitar essa continuidade ditando os rumos do país: com a oposição dizimada, tinha votos legislativos suficientes para reformular a Constituição e os distritos eleitorais sem depender de concessões ou acordos.
Mudanças na legislação
Com maioria absoluta no Parlamento, Orbán se movimentou rapidamente. As novas leis adotadas no país reduziram o total de parlamentares e, para atingir o novo número, envolveram o redesenho dos velhos distritos eleitorais, excluindo setores onde a oposição tradicionalmente vencia. No condado de Hajdú-Bihar, por exemplo, onde em 2006 os nove assentos parlamentares então existentes foram divididos entre socialistas (3) e o partido de Orbán (6), a alteração do mapa das seções eleitorais inviabilizou a oposição: se os mesmos votos da época fossem considerados no redesenho válido oito anos mais tarde, o Fidesz teria conquistado todos os assentos sem convencer um único eleitor a mais.
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Outra política impulsionada pelo Fidesz para facilitar seus triunfos eleitorais foi a concessão da cidadania para os descendentes de húngaros radicados nos países vizinhos, como a Romênia, fortemente identificados com a retórica nacionalista de Orbán. Grandes campanhas publicitárias foram promovidas em regiões romenas com importantes minorias de raízes húngaras, como a Transilvânia, incentivando que a população local se registrasse para obter a cidadania e votar. Hoje, um em cada dez eleitores é uma pessoa etnicamente húngara que, no entanto, vive em um país vizinho – e 95% deles votam no partido do primeiro-ministro.
Nas eleições de 2014 e 2018, as mudanças na lei significaram que a coalizão de Orbán manteve o controle de dois terços do Parlamento (133 assentos de 199 nas duas oportunidades) mesmo tendo feito menos de 50% dos votos nacionalmente.
As reformas constitucionais também expandiram a Suprema Corte do país, dando a Viktor Orbán a possibilidade de nomear mais juízes e obter uma maioria alinhada no momento em que sua legislação fosse colocada à prova nos tribunais. Além disso, a alteração na lei reduziu a idade de aposentadoria compulsória para magistrados para 62 anos de idade, abrindo ainda mais cargos para nomeação de nomes simpáticos ao premiê.
Os expurgos massivos também atingiram outros setores do funcionalismo público: em 2010, Orbán dizia desejar demitir até 12 mil servidores, embora não haja números oficiais de quantos efetivamente foram afastados.
Cerco aos imigrantes
Apesar das medidas que causaram alvoroço dentro do país já no início desta década, Orbán só começou a chamar a atenção do resto do mundo após o agravamento da crise migratória na Europa – um período em que a Hungria serviu como corredor de passagem para os refugiados vindos do Oriente Médio. O temor com atentados terroristas, especialmente na sequência do ataque ao jornal satírico francês Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, fez Orbán intensificar a retórica nacionalista e anti-imigratória.
Diante das pressões da União Europeia para que os países do bloco abrissem as portas para os refugiados, Orbán respondeu: “Ninguém vai nos dizer quem deixamos entrar em nossa casa”. E anunciou em rede nacional: “Não queremos ver minorias numerosas com características e culturas diferentes entre nós. Desejamos manter a Hungria sendo Hungria”. Sua resposta foi a construção de uma cerca de 175 quilômetros ao longo da fronteira com a Sérvia, ao Sul, por onde a maioria dos migrantes entravam. Com três metros de altura, arame farpado no topo e eletrificada, vigiada por câmeras infravermelhas, a cerca bloqueou o trânsito das pessoas e reduziu a dois por dia o limite de pedidos de asilo no país, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR, na sigla em inglês).
Orbán também organizou um referendo, no final de 2016, questionando se os húngaros aceitavam a ingerência da União Europeia sobre o país nas questões migratórias: a população devia responder se estava de acordo com o bloco determinando “cotas” de refugiados para cada país receber, mesmo sem aprovação do Parlamento local. Embora a posição de Orbán tenha sido apoiada por 98% dos eleitores que compareceram às urnas, o referendo não teve validade legal: para os resultados serem reconhecidos, era necessário um comparecimento de mais de metade do eleitorado, e a abstenção bateu em 56%.
A oposição acusou Orbán de utilizar o temor dos húngaros em relação aos muçulmanos para reconquistar apoio em um momento em que o Fidesz vinha perdendo votos em eleições regionais. A alegação era que a maioria dos migrantes não permanecia no país, preferindo seguir para as nações desenvolvidas da Europa Ocidental. De fato, a Hungria é, ela própria, um país com mais emigrantes do que imigrantes, e vê sua população diminuir em cerca de 30 mil pessoas por ano. Ainda assim, a retórica do premiê calava fundo no imaginário da maioria da população, que tem uma visão muito mais negativa dos muçulmanos do que a média europeia: 72% dos húngaros ostentam uma opinião desfavorável em relação a essa minoria, contra 43% dos europeus em geral, segundo uma enquete da Pew Research.
Denúncias abafadas
Entre as medidas apontadas pelos opositores de Orbán para tachar seu governo de autoritário, uma das mais repetidas é o progressivo controle exercido sobre a mídia desde o retorno do Fidesz ao poder, em 2010. Ainda que não exerça uma censura direta, o governo dificultou a vida dos jornais críticos ao primeiro-ministro, suspendendo as verbas de publicidade estatal, proibindo fusões entre grandes conglomerados de imprensa e impondo taxações que prejudicaram o principal canal não-alinhado ao governo, o RTL Klub, de maior audiência no país.
Em 2017, um estudo liderado por Marius Dagomir, diretor do Centro de Mídia, Dados e Sociedade da Universidade Centro-Europeia, em Budapeste, apontou que cerca de 90% dos veículos de imprensa húngaros são hoje de propriedade direta do Estado ou mantidos por oligarcas ligados ao Fidesz. O país também despencou nos rankings mundiais de liberdade de imprensa: no levantamento da Freedom House que mede aspectos como o ambiente legal, político e econômico em que a mídia opera, a Hungria caiu 44 posições entre 2010 e 2017 e agora ocupa o 84º lugar do mundo (entre 199 nações avaliadas) – no período, o país também foi rebaixado em sua categoria, deixando de ter uma imprensa considerada “livre” para “parcialmente livre”.
Com a imprensa cada vez menos independente, as denúncias de corrupção contra o Viktor Orbán e seu alto escalão costumam encontrar mais eco no exterior do que dentro do país. Alguns ministros do governo e até mesmo o genro do primeiro-ministro convivem com acusações de desviar verbas públicas. Em 2018, o Escritório Antifraudes da União Europeia (conhecido pela sigla OLAF) encontrou “sérias irregularidades” e “conflitos de interesse” em contratos milionários para renovar a iluminação pública de 39 cidades húngaras. Um estudo do Centro de Pesquisas sobre Corrupção de Budapeste também apontou que, entre 2010 e 2016, o governo Orbán favoreceu quatro oligarcas próximos ao premiê, cujas empresas ganharam vantagens para escapar de licitações e receber verbas da União Europeia.
Crescimento econômico
Apesar dos protestos da oposição e das reservas com que é visto pela comunidade internacional, Orbán segue gozando de grande popularidade dentro da Hungria devido, em boa parte, ao sucesso de suas medidas econômicas. Assumindo um país mergulhado na crise econômica, precisou combater um cenário de dívidas crescentes, alto desemprego e um PIB que vinha de cair mais de 6,5% em 2009, segundo dados do Banco Mundial.
Para reagir, o modelo econômico de Orbán (que seus apoiadores chamam de “Orbanomics”) adotou uma série de medidas pouco ortodoxas: estatizou os fundos de pensão privados, capturando sua liquidez para os cofres públicos, adotou um novo imposto de renda universal de 15%, aumentando a arrecadação, e priorizou a amortização da dívida interna e externa, reduzindo o déficit decorrente do pagamento de juros. Para combater o desemprego, implementou um amplo programa nacional que oferecia vagas em serviços braçais para os húngaros que estivessem sem colocação no mercado de trabalho. Segundo dados do governo, 750 mil empregos foram criados desde 2010, e a promessa de Orbán é que o número chegue a 1 milhão até o final da década. A Hungria tem 9,8 milhões de habitantes.
Enquanto o desemprego despencou de 11,5% para 3,8% nos oito anos desde que Orbán retornou ao poder, o PIB cresceu 16% no período, e os salários reais aumentaram ainda mais: cerca de 36%, segundo números do Eurostat. Os críticos do governo alertam que o modelo atual, apesar de dar bons resultados, ainda não se provou sustentável no longo prazo: grande parte dos investimentos públicos que reduziram o desemprego e permitiram a redução da dívida vieram através de verbas de auxílio da União Europeia, e não de riquezas produzidas no país.
Protestos
Os investimentos diretos do bloco comum continental correspondem a cerca de 4% do PIB húngaro e foram o combustível do desenvolvimento, apesar da retórica de Orbán, contrária ao intervencionismo da União Europeia. Além disso, embora mantenha bons resultados econômicos para os padrões do Leste Europeu, a Hungria permanece relativamente pobre: cerca de 600 mil húngaros deixaram o país desde o início de seu governo, buscando melhores salários em outros países da Europa.
A mais recente medida do governo para acelerar a economia foi a aprovação da controversa lei que flexibiliza a carga horária e o pagamento das horas extras no país: chamada de “lei da escravidão”, a medida levou às ruas os maiores contingentes contrários a Orbán desde o início de seu governo. De acordo com a lei, os trabalhadores húngaros agora podem cumprir até 400 horas extras anuais (antes eram 250), e os empregadores podem adiar o pagamento por até três anos.
A repercussão negativa da lei tornou-se o primeiro grande teste a um governo que, desde seu início, controla mais de dois terços do Parlamento e nunca encontrou oposição real. Os sindicatos húngaros alegam que, na prática, a lei obriga o trabalhador a cumprir 60% mais horas extras do que antes, já que há pouca proteção legal para os que negam as novas condições. Os grupos contrários à medida agora ameaçam Viktor Orbán com o que seria a primeira greve geral desde o fim do regime comunista no país. Os próximos protestos nacionais estão marcados para o sábado, 19 de janeiro.