Se algo surpreendeu na reta final de 2015 foi a carta do vice-presidente Michel Temer (PMDB) para a presidente Dilma Rousseff (PT). O tom do desabafo de Temer e mesmo a escolha do meio – uma carta impressa – coroaram um ano turbulento na política nacional.
Apesar do inusitado na atitude do vice-presidente, houve um tempo em que era muito comum escrever cartas. Embora o costume tenha se perdido com a chegada de novas tecnologias, muitas cartas trazem registros importantes da história – seja por terem sido escritas em momentos decisivos ou por nos rememorar de pessoas e comportamentos. Para lembrar daquelas que considerou mais “fascinantes”, o especialista Shaun Usher reuniu 125 correspondências no livro “Cartas extraordinárias – a correspondência de pessoas notáveis” (Companhia das Letras). Durante quatro anos, ele mergulhou em cartas, memorandos e telegramas para montar um “museu de cartas”, cujo objetivo é ampliar o público que tem acesso a esse tipo de correspondência.
Anônimos, personalidades históricas, celebridades e até personagens de desenhos revelam um pouco sobre si e sobre a época em que viveram. Confira a seguir alguns trechos dessas missivas:
De Gandhi para Adolf Hitler
“É evidente que, no momento, o senhor é a única pessoa do mundo capaz de impedir uma guerra que pode reduzir a humanidade ao estado de barbárie. O senhor pagaria esse preço, por mais valioso que lhe pareça o objetivo que tem em mente?”
Pacifista, o líder do movimento pela independência da Índia, Mohandas K. Gandhi escreveu a Adolf Hitler, influenciado por amigos. A carta, datada de 23 de julho de 1939, pedia que o ditador evitasse conflitos armados. O escrito nunca chegou ao destinatário por uma intervenção do governo britânico. Poucos meses depois, em setembro, a Alemanha invadiu a Polônica no episódio que marcou o início da Segunda Guerra Mundial.
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De Jack, o estripador, para George Lusk
“Envio para o sinhor metade do rim que tirei de uma mulier gardei para o sinhor pois a outra parte eu fritei e comi estava muito gostozo”. (Os erros de ortografia foram mantidos na tradução na tentativa de reproduzir a correspondência original).
A carta, cheia de erros de escrita, foi enviada em 15 de outubro de 1888 para o chefe do Comitê de Vigilância de Whitechapel, George Lusk. Junto de um grupo de cidadãos, ele buscava pelo auto de uma série de crimes que assolavam a região. O remetente assumia ser Jack, o estripador, o assassino em série. Com a carta, ele enviou metade de um rim humano, preservado em vinho. O órgão teria pertencido à quarta vítima do assassino, uma mulher chamada Catherine Eddowes.
De Albert Einstein para Franklin D. Roosevelt, ex-presidente dos Estados Unidos
“Esse novo fenômeno também levaria à construção de bombas, e é concebível – embora muito menos certo – que possibilite a construção de um novo tipo de bomba extremamente poderosa. Uma única bomba desse tipo, transportada em navio e detonada num porto, poderia destruir todo o porto e parte do território adjacente. No entanto, essas bombas talvez fossem pesadas demais para ser transportadas em avião”.
Albert Einstein escreveu uma carta ao então presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, no dia 2 de agosto de 1939, informando sobre os avanços em pesquisas científicas sobre urânio. À época, os cientistas já imaginavam que o urânio enriquecido poderia ser usado para construir uma bomba atômica. Einstein aconselhava o governo a tomar medidas urgentes, como garantir o fornecimento de minério e acelerar o trabalho experimental. Por causa da carta, Roosevelt criou o Comitê Consultivo de Urânio, que originou o Projeto Manhattan. Esse programa que resultou na construção das bombas Little Boy e Fat Man, que foram jogadas em Hiroshima e Nagasaki, em 1945, matando 200 mil pessoas. Mais tarde, Einstein qualificou a carta como “um grande erro de minha vida”.
De Fidel Castro para Franklin D. Roosevelt, ex-presidente dos Estados Unidos
“Se for do seu agrado, mande-me uma nota verde americana de dez dólares, na carta, porque eu nunca vi uma nota verde americana de dez dólares e gostaria muito de ter uma.”
Em 6 de novembro de 1940, Fidel Castro, aos 14 anos, escreve para o presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt. Na carta, Castro diz ter 12 anos e revela que não sabe muito de inglês, apenas o suficiente para escrever poucas linhas. Ele recebeu uma resposta-padrão da Casa Branca – e nenhuma nota de dez dólares. Treze anos depois, Castro liderou a revolução que derrubou o ditador Fulgencio Batista e que o levou ao poder na ilha. A carta do jovem Castro foi descoberta em 1977, por especialistas no National Archives and Records Administration.
De Rainha Elizabeth II para Dwight D. Eisenhower, ex-presidente dos Estados Unidos
“Ao ver no jornal de hoje uma foto do senhor diante de uma churrasqueira onde se assavam codornas, lembrei que não lhe mandei a receita dos scones que havia prometido em Balmoral”.
Em agosto de 1959, a rainha Elizabeth II recebeu o então presidente dos Estados Unidos, Dwight D. Eisenhower, e sua esposa no Castelo de Balmoral, na Escócia. Não se sabe o que foi discutido no encontro, mas é certo que o presidente gostou dos scones reais. O bolinho é típico para a hora do chá inglesa e pode ser feito com diversas combinações. A rainha escreveu uma carta ao presidente em 24 de janeiro de 1960, com a sua receita pessoal dos bolinhos.
De Iggy Pop para Laurence, uma fã francesa
“Mas principalmente gostaria de ver você respirar fundo e fazer o que for preciso para sobreviver e encontrar alguma coisa para amar”.
O músico Iggy Pop demorou nove meses para responder a carta de 20 páginas de uma fã, a francesa Laurence, de 21 anos. Em fevereiro de 1995, ela recebeu a resposta do ídolo em Paris, na manhã em que sua família estava sendo despejada por oficiais de justiça.
De Mario Puzo para Marlon Brando
“Escrevi um livro chamado O poderoso chefão que teve algum sucesso e acho que o senhor é o único ator que pode fazer o papel Chefão com a força e ironia (o livro é um comentário irônico sobre a sociedade americana) que o papel exige.”
Mario Puzo, autor do livro O Poderoso Chefão, escreveu para Marlon Brando em 23 de janeiro de 1970, dizendo que mais ninguém se encaixaria tão bem ao papel de Vito Corleone em uma versão cinematográfica do romance. Inicialmente, o estúdio não queria lhe dar o papel, por causa de sua fama de ator difícil. Entrou em cena o diretor Francis Ford Coppola, que filmou Brando como Corleone, o que bastou para os executivos da Paramount lhe darem o papel. O filme, de 1972, ganhou três prêmios Oscar, inclusive o de Melhor Ator. Brando, no entanto, não foi à cerimônia e mandou uma mulher, descendente de índios norte-americanos, chamada Sacheen Litthefeather em seu lugar.
De Groucho Marx para Woody Allen
“Você naturalmente sabe que responder cartas não dá dinheiro – a menos que sejam cartas de crédito da Suíça ou da máfia. Escrevo com relutância, pois sei que você está fazendo seis coisas ao mesmo tempo – cinco, incluindo sexo. Não sei onde você arruma tempo para se corresponder.”
O comediante Groucho Marx e o cineasta Woody Allen se conheceram pessoalmente em 1961 e iniciaram uma amizade que duraria 16 anos. No dia 22 de março de 1967, Marx finalmente voltou a escrever para o amigo Allen, depois de uma interrupção que deixou o cineasta irritado.
De Mark Twain para Walt Whitman
“Você viveu exatamente os setenta anos que são os maiores da história mundial & os mais fecundos em benefícios & progresso para os povos. Esses setenta anos fizeram muito mais para ampliar a distância entre o homem & os outros animais do que os cinco séculos que os precederam.”
“Que grandes coisas você viu nascer! A prensa a vapor, o navio a vapor, o navio de aço, a ferrovia, o descaroçador de algodão aprimorado, o telégrafo, o fonógrafo, a fotografia, a fotogravura, a galvanotipia, a iluminação a gás, a lâmpada elétrica, a máquina de costura & os incríveis, infinitamente variados e inumeráveis produtos do alcatrão de hulha, essas últimas e estranhíssimas maravilhas de uma época maravilhosa.”
Em 24 de maio de 1889, Mark Twain escreveu uma carta de congratulações de quatro páginas para Walt Whitman, que estava prestes a completar 70 anos.
De John F. Kennedy para Forças Aliadas
“SABE PILOTAR 11 VIVOS, PRECISO BARQUINHO”
Em 2 de agosto de 1943, uma lancha pilotada pelo futuro presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, foi abalroada pelo destróier japonês Amagiri e partiu-se ao meio. Dois tripulantes morreram. Os sobreviventes conseguiram chegar às Ilhas Salomão, onde Kennedy escreveu o pedido de socorro numa casca de coco e entregou para dois nativos, pedindo que levassem até à base aliada mais próxima. Anos depois, já como presidente, Kennedy mandou colocar a casca num envoltório de plástico e a levou para o Salão Oval, onde foi usada como peso de papel.