Era dezembro no norte da Síria e as temperaturas estavam caindo rapidamente. Milícias locais que lutavam contra o Estado Islâmico tinham sofrido perdas pesadas depois de uma dura batalha, e forças especiais dos Estados Unidos precisavam urgentemente levar cobertores para seus parceiros. Eles recorreram a uma pequena instituição de caridade comandada por Jim Hake, um ex-investidor de risco que fez fortuna com startups de tecnologia na Califórnia.
Dentro de oito horas, 200 cobertores tinham chegado para os combatentes sírios feridos, pagos pela ONG de Hake, Spirit of America (espírito dos Estados Unidos, em tradução livre).
Uma agência governamental teria problemas para responder tão rapidamente em um prazo tão curto. E é por isso que alguns generais e legisladores americanos acreditam que a organização de Hake encontrou uma maneira promissora de entregar ajuda externa, evitando incômodas burocracias ou contratos com o governo.
E, argumenta Hake, se extremistas então confiando em doações privadas para lançar ataques terroristas, por que cidadãos privados nos Estados Unidos não podem doar dinheiro para ajudar as forças americanas a lutar contra eles? “Para prevalecer, precisamos de todos os elementos do poder nacional – privados e públicos”, disse Hake.
Boas intenções, resultados desastrosos
Mas a abordagem — que se apoia no conselho de tropas americanas em combate — reflete as linhas crescentemente borradas entre trabalho de ajuda humanitária e operações militares. E céticos dizem que a mistura de ajuda humanitária, instituições de caridade privadas e missões militares ocidentais poderia levar a consequências danosas tanto para a população civil quanto para trabalhadores humanitários.
Sean McFate, um ex-oficial do exército americano que escreveu sobre o papel de empresas de segurança privada, disse que se preocupa com o precedente de introduzir dinheiro privado ligado a ricos empreendedores em uma zona de guerra, e que imitadores da Spirit of America poderiam ter agendas financeiras ou políticas em conflito com os interesses dos Estados Unidos.
“Há muitas consequências não intencionais que podem vir de intenções benevolentes”, disse McFate. “Alguém mais vem e imita esse modelo, mas suas intenções não são puras e isso se torna uma ladeira escorregadia.”
Empreendedorismo de guerra
A organização de Hake representa um desafio para o modelo tradicional de ajuda humanitária, em um tempo em que esforços de ajuda humanitária dos Estados Unidos estão sob um escrutínio sem precedentes da Casa Branca de Donald Trump. O grupo evita fundos governamentais em favor de doações privadas e explicitamente apoia missões militares americanas em vez de se identificar como um ator humanitário “neutro”.
Embora sua abordagem não convencional possa irritar algumas organizações de ajuda humanitária estabelecidas, o modelo empreendedor de Hake pode ter sido feito sob medida para o atual momento político.
O governo Trump tem uma visão cética da ajuda externa convencional e está propondo cortes drásticos a auxílios internacionais. A Casa Branca também aposta suas fichas em aplicar a expertise do setor privado a cada aspecto do governo federal e mostrou uma clara preferência por auxílios ligados a objetivos de segurança nacional em vez de a objetivos humanitários.
Auxílio de segurança
A Spirit of America parece se enquadrar na mentalidade do novo governo e fornece auxílio internacional rapidamente sem demandar um centavo do orçamento federal. E a Spirit of America tem apoio de alguns pesos pesados do Pentágono, que emergiu como a força dominante no gabinete de Trump. O secretário de Defesa James Mattis foi um apoiador de primeira data do trabalho do grupo, assim como chefe do Estado-Maior, general Joseph Dunford.
“É natural dizer – como podemos canalizar a energia empreendedora? Penso que há um interesse sincero nisso por parte do novo governo e dos novos líderes do Departamento de Defesa”, Hake disse à revista Foreign Policy.
Com uma equipe minúscula, em sua maioria militares americanos aposentados, a Spirit of America depende de doações privadas para apoiar missões militares e diplomáticas dos Estados Unidos ao redor do mundo, do Oriente Médio à África e à América Central. Seus projetos incluem ajuda humanitária convencional, como camas para um hospital no Tajiquistão. Mas, mais frequentemente, os programas se enquadram na definição de “auxílio de segurança” – fornecer equipamentos não letais e suporte para forças locais apoiadas pelas tropas americanas. A Spirit of America pagou por equipamentos para destruição de minas terrestres para os Peshmerga, combatentes curdos, no norte do Iraque e kits de primeiros-socorros para soldados locais em Níger. Hake disse que a abordagem de capital de risco do grupo – veloz, flexível e de pequena escala – permite que ele se mova com mais agilidade do que uma agência governamental ou uma empresa contratada pelo governo.
Não é claro se a organização representa uma tendência, embora coincida com crescentes clamores em Washington para trazer o conhecimento do setor privado para projetos de ajuda humanitária. Mas a Spirit of America está se aventurando em território jurídico não mapeado, levantando questões frescas acerca das relações entre auxílio externo e as forças armadas.
Barreiras legais
Hake e seus colegas são rápidos em observar que eles não têm contratos com o governo e não buscam fundos americanos, que seus projetos são sempre aprovados por embaixadores e comandantes militares e que têm recebido avaliações consistentemente positivas do campo.
Stanley McChrystal, um ex-comandante das forças armadas americanas no Afeganistão que serve no conselho da organização, disse que a Spirit of America tem se esforçado para garantir que cada projeto seja executado com “muito rigor” e adira a parâmetros éticos e jurídicos.
“Pelo que sei, todo caso passa por americanos no local, com sua organização mãe tendo obtido aprovação e aprovado essa relação”, McChrystal disse à FP. “Isso não é a mesma coisa que desviar armas para os Contras. Está muito acima do conselho.”
O grupo tem enfrentado barreiras legais ao longo dos anos, dado que o exército americano proíbe as tropas de solicitar presentes. Em 2010, o Pentágono e o Comando Central americano – então capitaneado pelo general Mattis – usaram seu peso para liberar o caminho para os projetos da Spirit of America, permitindo que a instituição de caridade entregue ajuda humanitária se atender a necessidades “identificadas” por comandantes americanos.
Economia de dinheiro
Ainda assim, o grupo frequentemente tem de explicar seu trabalho para promotores militares. Como resultado, diversos membros do Congresso apresentaram projetos para esclarecer as regras para ONGs que trabalham com o exército americano. O texto proposto, contido no projeto da Lei de Autorização da Defesa Nacional deste ano, requer que instituições de caridade tenham sede nos Estados Unidos e sejam registradas pela Agência de Desenvolvimento Internacional americana.
O senador republicano Tom Cotton, do Arkansas, um veterano do exército que serviu no Iraque e no Afeganistão, apoiou o projeto.
“Se há civis que podem ajudar nossas tropas, então é claro que deveríamos acolher seu auxílio”, Cotton disse em um e-mail. “Vai poupar dinheiro e, mais importante, salvar vidas. Esse projeto traz ganhos para todos.”
Com uma equipe de 12 pessoas e um orçamento modesto de cerca de três milhões levantados com doadores privados, a Spirit of America não mira em projetos de ajuda humanitária de larga escala que grandes ONGs administram mediante contratos com governos ocidentais. Em vez disso, vê a si mesma como preenchendo uma necessidade similar à preenchida por “investidores anjos” na economia de start-ups, apostando em novas ideias e iniciativas experimentais.
Subjacente ao trabalho do grupo está a premissa de que fornecer assistência a populações civis ou milícias locais pode ajudar a enfrentar a ameaçada representada pelo extremismo islamista. Embora o exército americano abrace a ideia, pesquisadores e especialistas em desenvolvimento discordam que o auxílio financeiro possa minar a violência militante e frear o recrutamento de voluntários por grupos extremistas.
“Corações e mentes”
No auge do envolvimento do exército americano no Afeganistão e no Iraque, oficiais americanos tinham grandes montantes de dinheiro à sua disposição para fornecer a projetos de ajuda humanitária que considerassem cruciais para sua missão de contrainsurgência. O programa, chamado Programa de Resposta de Emergência do Comando, era o filho intelectual do ex-comandante do exército no Iraque, general David Petraeus. O programa foi alvo de críticas pesadas, dado que nunca se prestou contas por parte do dinheiro, e especialistas hoje questionam se a abordagem custosa e assistemática realmente ganhou “corações e mentes”.
O trabalho da Spirit of America tem alguma semelhança com o programa do exército, mas a organização diz que seus projetos são muito menores e passam por um processo de aprovação muito mais rigoroso – frequentemente com o aval de um embaixador ou diplomata sênior americano.
Quando o Departamento de Estado quis fornecer centenas de rádios a manivela para civis no norte da Síria em 2014 para lhes dar acesso a notícias de uma estação oposicionista, a Spirit of America foi capaz de entregar os rádios em semanas, uma tarefa que tomaria meses a uma agência governamental ou uma empresa contratada pelo governo.
“Eles não foram descuidados, mas foram rápidos”, disse John Jaeger, que trabalhou no projeto pelo Departamento de Estado. “Sendo alguém que constantemente lutou contra as amarras da burocracia, era realmente útil efetivamente conseguir auxílio na zona de combate.”
Mensagem errada
Como os projetos de auxílio de Petraeus, o trabalho do grupo se apoia na noção de que entregar equipamentos ou alívio humanitário pode ajudar a conquistar o apoio da população local, e manter extremistas violentos à distância.
William Easterly, professor de economia da Universidade de Noa York, argumenta que não há evidências conclusivas de que fornecer ajuda humanitária possa reduzir violência extremista ou minar o apelo de ideologias militantes. Além disso, ligar projetos humanitários tão de perto às forças armadas passa a mensagem errada a civis que precisam de ajuda humanitária, e pode colocar trabalhadores humanitários em perigo, já que eles são associados a soldados, disse. “Força militar diz respeito à coerção e não deveria desempenhar nenhum papel na ajuda humanitária”, disse.
Trabalhadores humanitários veteranos dizem que a chave para enfrentar o extremismo tem menos a ver com colocar plástico em janelas estouradas ou restaurar a eletricidade e mais com garantir que o governo local tenha a confiança de seus cidadãos.
“Só a ajuda humanitária não vai te dar aquilo de que precisa”, disse Jeremy Konyndyk, um ex-oficial sênior da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional. “As pessoas precisam de ajuda humanitária, mas, mais importante, ela precisam acreditar que há uma autoridade governante legítima.”
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