Um rio fino separa Bangladesh de Mianmar, e uma noite, um grupo de homens se sentou do lado de Bangladesh, olhando para a escuridão e se perguntando o que seria deles.
Para esses homens, refugiados muçulmanos da etnia rohingya, de Mianmar, certamente não há nada do outro lado do rio. Seu lar não existe mais. O exército do país destruiu suas vilas em agosto, transformando casas, mesquitas, currais, celeiros, pastagens e até árvores em pilhas de cinzas.
Os campos lamacentos de Bangladesh, para onde mais de 600 mil rohingyas fugiram desde então, também não oferecem qualquer solução.
As autoridades de Bangladesh, um país densamente povoado, insistem que Mianmar precisa aceitar os rohingyas de volta. No entanto, foi a maioria budista desse país que os expulsou, criando um clima de ódio que sempre amaldiçoou os rohingyas como subumanos. Muitas pessoas em Mianmar insistem que eles migraram de maneira ilegal a partir de Bangladesh, apesar de os rohingyas estarem estabelecidos ali há centenas de anos.
Leia também: Crianças refugiadas que perderam suas famílias correm riscos nos campos de Bangladesh
Poucos grupos étnicos estiveram presos em uma lógica tão sem esperanças, abandonados em uma fronteira internacional, indesejados pelos dois lados, cansados, traumatizados, desesperadamente apátridas e com suas próprias origens em discussão.
"Os rohingyas são os miseráveis da terra", diz Leonard Doyle, porta-voz da Organização Internacional para as Migrações, a agência que ajuda a coordenar os esforços de apoio.
"Ninguém os quer. Estou falando de crianças de sete anos que testemunharam seus pais terem as gargantas cortadas e estão esperando na fronteira, descalços, agora mesmo se perguntando: O que vai acontecer comigo?", relata Doyle.
Bangladesh e Mianmar realizaram reuniões sobre o que fazer com os refugiados, sem que qualquer representante dos rohingyas estivesse presente. Da mesma maneira, as Nações Unidas recentemente convocaram um evento importante em Genebra chamado Conferência de Promessas para a Crise dos Refugiados Rohingyas. Foram convidadas dezenas de nações doadoras de recursos e instituições de apoio, mas nenhum dos refugiados rohingyas.
Agora, os rohingyas se preocupam com o fato de que, sem qualquer contribuição deles, seu destino esteja sendo selado. É muito clara qual seria a opinião geral, se fossem consultados.
"Eu nunca vou voltar para Mianmar. É melhor você nos matar aqui", afirmou uma senhora da etnia que passa seus dias sob uma lona em um campo. Depois que o marido e o filho foram assassinados na sua frente, ela fugiu para Bangladesh.
As autoridades deste país distribuíram o rascunho de um acordo de repatriação, especificando como verificar que os refugiados rohingyas, vários deles analfabetos e sem qualquer documento, são de Mianmar. A proposta fala sobre um "primeiro lote" de repatriados e menciona inclusive a logística e o transporte.
Os funcionários das agências de ajuda ocidentais, no entanto, disseram que essa questão não está resolvida. Os rohingyas não vão voltar para Mianmar em breve, garantiram. Mas ninguém afirma isso claramente, porque a informação poderia alienar Bangladesh, que não quer hospedar os refugiados indefinidamente, mas cuja boa vontade é necessária no momento.
Para complicar mais as coisas, dizem os analistas, Mianmar acabou com os esforços para ajudar os rohingyas, algo nada surpreendente considerando a maneira como a crise começou. Testemunhas descreveram, com detalhes perturbadores, como o exército do país queimou vila após vila, aterrorizando e massacrando os civis – de qualquer idade, inclusive crianças – com um propósito aparente: tirar os rohingyas de cena.
A violência não acabou. Um grupo de defesa da etnia disse recentemente que suas casas ainda estão sendo queimadas.
Todas as noites, aqui na fronteira, centenas de rohingyas continuam a chegar em frotas de barcos de madeira que flutuam silenciosamente através da foz do Rio Naf, o riacho salobro que separa os dois países.
Um grupo de jornalistas do The New York Times esperava no escuro junto com membros preocupados de uma família enquanto um holofote do lado de Mianmar se movia para frente e para trás como um estranho metrônomo balançando na escuridão.
"Como podemos falar sobre a repatriação?", perguntou Tun Khin, um dos poucos representantes dos rohingyas educados no Ocidente que conseguem se comunicar com os meios de comunicação internacionais.
Campos
Bangladesh se encontra em uma situação complicada. Um dos países mais pobres da Ásia, abriga 160 milhões de pessoas – metade da população dos Estados Unidos – espremidas em um espaço do tamanho do estado de Iowa. Os refugiados rohingyas tomaram as montanhas, cortaram inúmeras árvores para construir abrigos e pressionaram a economia das vilas fronteiriças de Bangladesh, onde os preços dos produtos aumentaram três vezes, irritando os morados mais antigos.
Frente à pressão internacional para acolher os refugiados e certa pressão doméstica para expulsá-los, a primeira ministra de Bangladesh, Sheikh Hasina, disse que seu país vai continuar a ajudar os refugiados por motivos humanitários, mas que Mianmar precisa "aceitar de volta seus cidadãos".
Ela ordenou que o exército fechasse as estradas em volta dos campos para garantir que os rohingyas não comecem a migrar para as cidades.
Sem meios para se manter, os refugiados dependem completamente de ajuda. As agências da ONU, como o Programa Mundial de Alimentos, vêm alimentando as pessoas, enquanto as instituições de caridade internacionais e de Bangladesh oferecem cuidados médicos, lonas, panelas e outros produtos básicos.
Vários habitantes de Bangladesh também se preocupam com o fato de os rohingyas serem candidatos perfeitos para a radicalização – vítimas de perseguição contra os muçulmanos que agora estão ociosos e não possuem mais nada. A retaliação é um dos temas do Estado Islâmico e de inúmeros grupos de militantes islâmicos, entre eles o grupo rohingya que atacou as forças de segurança em Mianmar em 25 de agosto, o Exército de Salvação Rohingya de Arakhan.
"Se eles continuarem onde estão, toda a região irá se tornar um terreno propício", afirma Anup Kumar Chakma, oficial aposentado do exército bengali.
Para os rohingyas, as condições de Bangladesh são um eco desconfortável do sistema de apartheid sob o qual viviam em Mianmar, resultado de uma longa campanha de marginalização e desumanização.
Por décadas, os rohingyas foram empurrados de um lado a outro nesta região no canto da Ásia, onde o subcontinente indiano e a península do sudeste asiático se encontram. Seu status humilde e sua história de demonização permitiram que esta última crise acontecesse, dizem analistas.
Se os britânicos tivessem esticado a fronteira colonial entre o que são hoje Mianmar e Bangladesh um pouco mais para o leste e para o sul, como os líderes rohingyas pediram depois da Segunda Guerra, as grandes áreas rohingyas teriam se tornado parte de Bangladesh. Isso faria sentido de diversas maneiras: os rohingyas são muçulmanos, como a grande maioria dos habitantes de Bangladesh, além disso, sua linguagem e cultura são muito parecidas.
Mas estudiosos dizem que, para agradar a maioria budista e sair de Mianmar o mais rapidamente possível, os britânicos decidiram seguir as velhas fronteiras de um extinto reino budista. Isso manteve os rohingyas dentro de Mianmar, onde a maioria das pessoas é muito diferente deles, tanto em etnia quanto em religião.
Continuamente, os líderes de Mianmar foram eliminando seus direitos, tornando extremamente difícil para os rohingyas conseguir um emprego no governo ou um passaporte, ir à escola ou até mesmo se casar legalmente. Soldados do governo os espionavam; reverenciados monges budistas os chamavam abertamente de insetos e cobras.
Tudo isso agora parece ter levado à crise de agosto, quando os rohingyas sofreram o mais abrangente ataque em sua existência.
Segundo dezenas de testemunhas e grupos de direitos humanos, depois que os militantes rohingyas atacaram uma série de postos policiais – em grande parte usando ferramentas agrícolas como armas –, as tropas do governo cercaram e mataram centenas de civis da etnia, fazendo com que vários outros fugissem em pânico.
Todas as noites, os rohingyas se sentam em uma calçada destruída perto da praia esperando por membros da família que ainda estão tentando sair do país vizinho. Às nove da noite, os barcos normalmente começam a chegar. Sem qualquer barulho, eles se materializam na escuridão, com homens remando desde Mianmar e os motores desligados, para passarem despercebidos.
Em uma noite recente, uma das mais difíceis, centenas de rohingyas saíram dos barcos. Muitos estavam calados, e alguns choraram quando pisaram na terra.
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
Quem são os indiciados pela Polícia Federal por tentativa de golpe de Estado
Bolsonaro indiciado, a Operação Contragolpe e o debate da anistia; ouça o podcast
Seis problemas jurídicos da operação “Contragolpe”