Mulher usa máscara para evitar infecção por coronavírus em Pequim, China| Foto: NICOLAS ASFOURI / AFP
Ouça este conteúdo

Depois da repressão do governo chinês ao movimento pró-democracia em 1989, o povo chinês efetivamente assinou um contrato social com o Partido Comunista da China (PCC). Nada foi oficialmente escrito, mas os termos foram bem compreendidos: o povo aceitaria direitos e liberdade limitados em troca da prosperidade e estabilidade que o PCC prometeu proporcionar.

CARREGANDO :)

Por várias décadas, o contrato social pareceu funcionar bem para os dois lados. O PIB per capita da China aumentou de US$ 310 em 1989 para US$ 16.186 em 2018. Muitas cidades chinesas foram transformadas de remansos econômicos em centros comerciais e industriais com muitos arranha-céus brilhantes e grandes letreiros de neon que competem com os da Times Square em Nova York. As empresas ocidentais têm feito de tudo, abrindo mão voluntariamente de sua tecnologia e impondo autocensura para obter acesso aos consumidores chineses. Os turistas chineses têm sido bem-vindos em todos os lugares por causa de suas carteiras recheadas e gosto aparentemente insaciável por artigos de luxo.

O povo chinês não está apenas ficando mais rico, mas também está confiante na visão que o líder da China, Xi Jinping, apresentou a eles - o "Sonho da China", que proclama que a ascensão da China não pode ser contida e que ela está destinada a retornar à sua antiga glória como nação mais poderosa sob o sol. Certamente, existem alguns "inconvenientes" da vida na China aqui e ali: ser constantemente vigiado por um sistema de vigilância em massa, ser instruído sobre como se comportar por um sistema intrusivo de "crédito social", a crescente censura e impossibilidade de acessar sites populares como o Facebook e o Twitter, devido ao "Grande Firewall da China", e a crescente repressão a religiosos e dissidentes políticos. No entanto, a maioria do povo chinês não levantou objeções ao regime autoritário do PCC e simplesmente aceitou esses "inconvenientes" como um preço necessário a ser pago pela estabilidade e prosperidade.

Publicidade

Então veio a notícia do surto de coronavírus. Não houve falta de esforços por parte do governo chinês para encobri-lo desde o início. As autoridades chinesas esperaram um mês inteiro antes de informar a Organização Mundial da Saúde e esperaram até o final de janeiro para notificar o público chinês. Enquanto isso, as autoridades prenderam denunciantes, alertaram médicos e enfermeiras para manter a boca fechada, mantiveram o número de infectados artificialmente baixo e mandaram um exército de censores limpar imagens, discussões e mensagens relacionadas ao coronavírus na internet. Ainda assim, o surto não é algo que o governo chinês possa facilmente censurar. Ele aconteceu no coração do país, numa época em que a maioria dos 1,4 bilhão de chineses estava em um feriado prolongado e deveria estar celebrando a data mais importante do país com suas famílias.

O vírus já matou mais de 1.100 pessoas e infectou mais de 44.000 em todo o mundo, com a grande maioria dos casos na China. Embora o governo chinês tenha tomado medidas draconianas para isolar 60 milhões de pessoas - incluindo em Wuhan, uma cidade de 11 milhões de habitantes e o epicentro do surto -, o vírus se espalhou por todos os cantos da China. Ao contrário do aprisionamento de uigures ou cristãos, esse surto atinge a todos. Todos são impactados de uma maneira ou de outra. A China é conhecida como a fábrica do mundo, mas agora está tendo dificuldades para fornecer um número suficiente de máscaras. A indústria de biotecnologia da China teve um crescimento de dois dígitos nas últimas duas décadas, mas há uma escassez de kits de teste de coronavírus. O sistema de saúde administrado pelo governo está sobrecarregado por pacientes e pessoas que desejam fazer o teste. Muitas vezes o sistema acaba mandando embora pacientes doentes que deviam ser tratados e colocados em quarentena. As redes sociais estão cheias de imagens de chineses desesperados pedindo ajuda externa, como esta. Neste vídeo comovente, uma mãe implora aos guardas para deixar que ela e sua filha com leucemia passassem para que pudessem ir a outro hospital para o tratamento de sua filha.

Embora o governo chinês pareça incapaz de lidar com o vírus de maneira eficaz, ele não hesita em implementar algumas das medidas mais cruéis que se possa imaginar para minar a vida humana em nome do combate ao vírus. O New York Times relata que na quinta-feira passada, as autoridades de Wuhan começaram "buscas de casa em casa, reunindo os doentes e os alojando em enormes centros de quarentena". Esses centros de quarentena em massa não são uma boa ideia. Dada a escassez de médicos e enfermeiros e a falta de uma cura, as pessoas naturalmente têm medo de que sejam deixadas para sobreviver ou morrer por conta própria nesses centros. Ninguém quer ir a esses centros. Existem vídeos de pessoas sendo arrastadas à força para fora de suas casas. A falta de preocupação com dignidade e vidas humanas é mais do que assustadora.

Nas cidades em isolamento, a vida para aqueles que não estão doentes com o coronavírus também não é fácil. Os preços dispararam nos supermercados. Todo o transporte público parou. Muitos idosos ou pessoas com deficiência são deixados cuidando de si mesmos. Um rapaz de 17 anos com paralisia cerebral na província de Hubei morreu por falta de cuidados depois que seus cuidadores foram colocados em quarentena. As pessoas estão começando a ter uma sensação de desespero. Eles querem saber que tipo de poder mundial a China realmente é se não consegue cuidar de seu próprio povo contra um vírus semelhante ao da gripe. Um chinês postou: "Depois de ler a matéria, você ainda consegue se gabar da China ser forte?" Neste outro vídeo, uma mulher indignada que nem se preocupou em esconder o rosto demonstrou sua raiva contra o PCC: "Vocês nos prometeram prosperidade até 2020. Tudo o que temos é a perda de nossa família! Vocês estão vivendo uma vida boa enquanto nós estamos morrendo!"

Internacionalmente, vários países suspenderam voos de e para a China. Visitantes, turistas e até investidores da China de repente sentem que não são mais bem-vindos. A China não esteve tão isolada desde seu isolamento auto-imposto no século 18. Então, o povo chinês soube que toda o seu sofrimento poderia ter sido evitado se as autoridades chinesas tivessem ouvido os denunciantes que alertaram sobre o vírus em 30 de dezembro de 2019. Em vez disso, os denunciantes foram repreendidos por "espalhar boatos" e foram advertidos a se calar ou enfrentar acusações criminais. Um dos denunciantes, o Dr. Li Wenliang, foi repreendido pelas autoridades de Wuhan por "espalhar boatos" depois de tentar alertar seus amigos sobre o vírus em dezembro de 2019. Ele foi hospitalizado em 12 de janeiro, após tratar, sem saber, um paciente infectado pelo coronavírus. Estranhamente, não houve confirmação de que o Dr. Li havia contraído o coronavírus até 1º de fevereiro. Durante esse período, a China insistiu que nenhum profissional médico havia sido infectado e que o coronavírus não era transmitido de humano para humano. A demora no diagnóstico do Dr. Li pode ter atrasado seu tratamento. Ele faleceu em 6 de fevereiro, aos 34 anos. Para muitos chineses, o Dr. Li pagou o preço final por falar a verdade na China.

Publicidade

A morte de Li desencadeou a indignação e a frustração reprimidas do povo chinês em relação ao governo da China. Eles estão fartos dos encobrimentos, das mentiras e da incapacidade do governo de fazer qualquer coisa de forma eficaz. Eles veem o foco dos líderes do Partido Comunista em manter o controle e a estabilidade a todo custo, mesmo que isso signifique sacrificar vidas humanas, como algo profundamente perturbador.

Um exame de consciência nacional começou. O número de postagens online e a franqueza com que as pessoas expressam sua tristeza, raiva e frustração não têm precedentes. A hashtag #wewantfreedomofspeech [Nós queremos liberdade de expressão] cresceu no site de mensagens mais popular da China, o Weibo, na manhã de sexta-feira. Ela sobreviveu por cinco horas, com dois milhões de visualizações e mais de 5.500 compartilhamentos antes de ser eliminada pelos censores. As pessoas também postaram vídeos da canção do musical Les Misérables "Vocês ouvem o povo cantar?" e o texto da Constituição da China, que estipula a liberdade de expressão. Mas mais pessoas, provavelmente sem medo de censura pela primeira vez em suas vidas, postaram comentários como: "É hora de refletir sobre o pensamento profundamente arraigado de que 'a estabilidade supera tudo', que machuca a todos". Esses comentários indicam que o povo chinês começou a repensar o contrato social com o qual concordaram - trocando liberdade por estabilidade e prosperidade. O surto de coronavírus destruiu a fachada da estabilidade e forçou muitos a perceber que trocar a sua liberdade nunca é um bom negócio.

O governo chinês se excedeu para conter a indignação das pessoas. Não sabemos se a indignação do povo chinês resultará em alguma mudança significativa na China. Mas o que acontece na China sempre tem implicações em outros lugares. Quando você troca sua liberdade por estabilidade, você acaba sem nenhuma delas.

*Helen Raleigh é autora de "Confucius Never Said".

©2020 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês

Publicidade
Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]