Quando tinha oito anos, Muhammad viu os combatentes do Estado Islâmico (EI) arrancarem seu pai de sua casa em Mossul e o matarem com um tiro no meio da rua. "Eu gritei e chorei para que eles o deixassem em paz, para saírem de minha casa, mas eles não me ouviram", afirmou Muhammad, que hoje está com dez anos.
Depois que os militantes levaram sua mãe, Muhammad, seus dois irmãos mais novos e sua irmã acabaram em um acampamento para desalojados e, finalmente, no orfanato da cidade.
Eles estão entre as dezenas de milhares de crianças iraquianas que perderam seus pais por causa da brutalidade do EI e das prolongadas batalhas para retomar o território iraquiano de seu domínio.
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No entanto, ao contrário dos soldados do governo que combateram nessas batalhas e são homenageados com memoriais em quase todas as cidades, essas crianças correm o risco de se tornar vítimas esquecidas da guerra. O Estado iraquiano tem poucos recursos para elas, e as comunidades devastadas do país, ainda lutando para reconstruir serviços básicos como saúde e eletricidade, estão sobrecarregadas demais para lidar com as necessidades dos órfãos.
"Todos temos visto tanto sofrimento nos últimos anos, cada um tem sua própria história de perda", afirma Amal Abdullah, vice-diretor do orfanato de Mossul. "Mas essas crianças foram as que mais sofreram. É nosso dever tentar devolver a elas um pouco de felicidade e conforto."
Números difíceis de estimar
Nenhuma agência do governo iraquiano ou grupo humanitário internacional tem estatísticas abrangentes sobre o número de órfãos desde meados de 2014, quando o EI assumiu mais de um terço do país, até dezembro de 2017, quando o governo iraquiano reconquistou as principais cidades que estavam nas mãos dos extremistas.
A chefe do comitê de mulheres do conselho provincial de Mossul, Sukaina Ali Younis, compilou registros de aproximadamente 13 mil órfãos na cidade. Durante a batalha para liberar Mossul, ela se tornou, sozinha, um verdadeiro centro de coordenação para crianças perdidas ou abandonadas, levando para casa dezenas que foram encontradas pelos soldados.
Assistentes sociais afirmam que há milhares mais em outras cidades e províncias retomadas. Eles dizem que 20 mil seria uma estimativa conservadora do total. O número inclui crianças que perderam apenas um dos pais, que os iraquianos também classificam como órfãos já que pais solteiros, nesta cultura, não podem servir simultaneamente como provedores e cuidadores.
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Dezenas dessas famílias entrevistadas em Mossul, porém, dizem que estão sobrecarregadas com o dever e não contam com a ajuda de assistentes sociais, dinheiro para assistência médica e apoio para seus próprios traumas emocionais como sobreviventes da guerra. Eles procuram, muitas vezes em vão, a ajuda das agências governamentais, que não possuem muitos fundos, e instituições de caridade locais.
Aqueles que não têm familiares são deixados no orfanato de Mossul, um abrigo governamental que o EI usou como um austero quartel de soldados adolescentes quando tomou a cidade.
Força de vontade para cuidar das crianças
Na primavera, o diretor do orfanato, Ghazwan Muhammad, e sua equipe de sete assistentes sociais, enfermeiras e cozinheiros reabriu a casa para dar a 50 crianças um lugar para morar. Eles passaram meses sem receber salários, transformando os prédios, pintando o berçário com cores vivas, procurando empresas para doações de brinquedos e cobertores e transportando novos equipamentos para o playground. Só começaram a receber financiamento do governo em junho.
Entre os órfãos, estão os filhos de vítimas do EI, como Muhammad, e dos membros do grupo, também conhecido pela sigla em árabe Daesh. Entre elas, há 17 recém-nascidos abandonados pelas mães, segundo a equipe, por causa do estigma de criar o filho de um militante.
Segundo Iman Salim, assistente social do orfanato,
Nenhuma criança é responsável pelas ações de seus pais. Cada uma das nossas crianças é uma vítima. Todas precisam do nosso amor.
Quando um menino de dez anos e cabelos castanhos, cujo pai havia sido combatente do EI, chegou ao orfanato há alguns meses, sofria o mesmo trauma que outras crianças. Seu sono era atormentado por pesadelos e seus dias eram tristes por causa da perda da família. A equipe tentou manter a identidade de seu pai em segredo para evitar conflitos. Mas as notícias vazaram e, de repente, a vida quieta e estável que haviam tentado construir para as crianças desmoronou.
Muhammad foi o primeiro a atacar o outro garoto com socos, e os funcionários tiveram que apartá-los. "Toda vez que o via, pensava, 'Eu realmente odeio esse garoto'", contou Muhammad em uma entrevista na presença da agente social. "Eu odeio o Daesh e o que eles fizeram com meu pai e, todas as vezes que o via, eu o odiava tanto quanto ao grupo."
Os assistentes sociais aconselharam Muhammad a canalizar sua raiva e sua mágoa para os exercícios físicos. Para o outro garoto, disseram que podiam garantir que ele estava seguro e era observado para que não fosse deixado de fora dos jogos ou das brincadeiras.
Em apenas algumas semanas, segundo os assistentes sociais, os dois meninos estavam jogando futebol no mesmo time e andando juntos para a escola.
Famílias mais pobres tem dificuldades
Para os órfãos que estão morando com parentes, esse apoio psicológico não tem sido fácil de encontrar. Eles também carecem de serviços básicos, incluindo educação e saúde. Muitas das famílias vivem à beira da pobreza, já que perderam a maior parte de suas posses na guerra.
Nour, uma menina de dez anos cuja brincadeira favorita era fingir ser uma princesa, parou de brincar em julho de 2017, quando perdeu 19 membros de sua família que tentavam escapar da Cidade Velha de Mossul, última região sitiada pelo EI.
Seus pais, parentes e vizinhos decidiram deixar os abrigos antiaéreos onde estavam escondidos há dias e correr para a segurança das linhas do exército iraquiano. Enquanto se esquivavam de balas, tropeçando em montes de entulho, um homem-bomba do EI correu até eles e se explodiu.
Nour se lembra apenas de ter sido lançada ao ar. Seus pais, sua irmãzinha, seis primos, seis tias e tios e sua avó foram mortos.
Os parentes que sobreviveram, uma tia-avó de 63 anos e sua irmã casada de 21 anos, a encontraram em um hospital de campanha, onde um médico militar dos EUA salvou sua vida. Eles a levaram, frágil e enfaixada, para a casa de sua tia.
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A família, porém, não tinha como cuidar das feridas doloridas em seu rosto, mãos e braços, ou da dor emocional que ela carrega. Nour teve queimaduras de segundo e terceiros graus da ponta dos dedos até os cotovelos e nas faces, assim como um dano grave nos nervos das duas mãos.
Sua tia-avó, Sukaina Muhammad, que perdeu o marido na mesma explosão, consegue se virar com pacotes de comida que recebe de uma instituição de caridade local. Ela gastou as poucas economias da família em duas operações para ajudar Nour a recuperar o uso dos braços, mas não pode pagar pela cirurgia reconstrutiva.
Recentemente, elas a matricularam na escola, esperando que uma rotina regular a ajudasse a lidar com a solidão e a tristeza. Em sua primeira semana de aula, os colegas e professores riram da aparência de garras de suas mãos queimadas. "Dá para imaginar algo tão cruel quanto isso?", perguntou a tia.
Nour parou de ir para a aula. Ela agora passa o dia ajudando a tia-avó com tarefas domésticas. Seu brinquedo favorito é um Mickey Mouse de pelúcia. Ela prefere o ratinho às lindas bonecas de suas primas. "É difícil brincar com elas. Eu não sou bonita assim", diz ela.
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