Centenas de pessoas chegam todos os dias, muitas delas abatidas, sem um tostão sequer, e passam por uma bandeira esfarrapada que marca a fronteira.
Ao cruzá-la, reúnem-se em praças e parques públicos tomados por abrigos improvisados, gerando preocupações em relação a drogas e criminalidade. Os mais sortudos dormem em tendas e fazem fila para pegar as refeições fornecidas pelos soldados – mulheres grávidas, pessoas com deficiência e famílias com crianças pequenas muitas vezes têm prioridade. Os menos afortunados ficam sob lonas que acabam caindo durante as tempestades.
A descrição desta cena lembra o fluxo de imigrantes desesperados que escaparam das guerras na Síria e no Afeganistão e geraram uma reação e tanto na Europa, mas estão ocorrendo no Brasil, onde uma onda de pessoas fugindo do agravamento da crise econômica na Venezuela começou a testar a tolerância na região.
Recentemente, o governo do estado de Roraima processou a União, exigindo o fechamento da fronteira com aquele país e o envio de mais dinheiro para seus sistemas de educação e de saúde sobrecarregados.
"Temos medo de que isso possa levar a uma desestabilização econômica e social em nosso estado. Estou cuidando das necessidades dos venezuelanos em detrimento das dos brasileiros", disse a governadora Suely Campos.
Dezenas de milhares de venezuelanos que encontraram refúgio no Brasil nos últimos anos são a prova viva do agravamento da crise humanitária que seu governo alega não existir.
Esse êxodo está desgastando as políticas imigratórias da região, em geral generosa e permissiva. Recentemente, Trinidad deportou mais de 80 venezuelanos que buscavam asilo; em comunidades colombianas e brasileiras na fronteira, os moradores locais atacaram os acampamentos venezuelanos.
Fluxo migratório e a política ‘de portas abertas’
Nos primeiros meses deste ano, cinco mil venezuelanos deixavam sua terra natal diariamente, de acordo com as Nações Unidas. Nesse ritmo, os números mensais de saída do país serão mais altos do que os dos 125 mil exilados cubanos que fugiram no Êxodo de Mariel, em 1980, e que acabaram transformando o sul da Flórida.
Se a taxa atual permanecer constante, mais de 1,8 milhão de venezuelanos terão deixado o país até o final de 2018, juntando-se a cerca de 1,5 milhão de outros que fugiram da crise econômica para reconstruir a vida no exterior.
Quando os venezuelanos começaram a se espalhar por toda a América Latina em grandes números, em 2015, em geral encontravam fronteiras abertas e facilidade para garantir a residência legal nos países vizinhos.
Mas, conforme o volume foi aumentando – e com mais gente chegando sem dinheiro e precisando de cuidados médicos –, algumas autoridades na região começaram a questionar a manutenção da políticas de "portas abertas".
Campos disse que tomou a medida "extrema" de processar o governo federal porque o fluxo dos venezuelanos gerou um aumento da criminalidade, diminuiu os salários de trabalhadores braçais e desencadeou um surto de sarampo, que havia sido erradicado no Brasil.
Segundo ela, pelo menos 93 pessoas foram assassinadas durante os primeiros quatro meses deste ano, já superando as 83 mortes violentas registradas no ano passado. E os policiais dizem que o narcotráfico na região aumentou pois os imigrantes indigentes acabam sendo atraídos por redes brasileiras de contrabando.
A população de Boa Vista, capital do estado, inchou nos últimos anos, pois cerca de 50 mil venezuelanos foram reassentados lá. Eles agora compõem cerca de 10% da população da cidade. A princípio, os moradores responderam com generosidade, fazendo sopões e organizando coleta e distribuição de roupas.
Porém, no ano passado, os habitantes de Pacaraima, a cidade de fronteira, e de Boa Vista, a capital do estado, que fica a 210 quilômetros da divisa, já se sentiam sobrecarregados.
"Boa Vista mudou, e isso começou a gerar uma instabilidade tremenda", disse a prefeita Teresa Surita.
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Situação insustentável
Em uma manhã recente, os que estavam instalados na Praça Simón Bolivar, uma das maiores da cidade, preparavam refeições em pequenos fogões a lenha. Alguns cochilavam em redes, enquanto outros olhavam fixamente para o vazio, sem ter para onde ir e nada para fazer.
O clima era desagradável. Uma infecção digestiva havia se espalhado pelo acampamento, levando a episódios de vômitos e diarreia. Para piorar a situação, os moradores, em um ato de rebeldia, queimaram uma fileira de arbustos perto da praça que estava sendo usada como banheiro pelos venezuelanos.
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Ao ver a fumaça do outro lado do parque, Ana García, 56 anos, disse que mal podia acreditar em sua nova realidade no Brasil.
Ela tinha casa própria, comia bem e vivia confortavelmente com o salário de assistente social na cidade venezuelana de Maturín, mas quanto seu salário praticamente desapareceu no ano passado, por causa da inflação, largou o emprego de mais de uma década, esperando receber dinheiro suficiente para ir para o exterior.
Porém, acabou recebendo um valor tão baixo que deu apenas para comprar um pequeno saco de arroz, metade de uma galinha e uma banana. Como a comida se tornava cada vez mais escassa, García partiu em uma viagem de quase mil quilômetros com a filha de 18 anos de idade, pedindo carona na maior parte do caminho.
Ela conta que, na primeira noite em que dormiu na praça, caiu no choro antes de se arrastar para baixo de uma lona preta que agora compartilha com a filha.
"Eu nunca pensei que chegaríamos a esta situação. Não estamos acostumadas a viver como indigentes, mas a Venezuela está destruída. As pessoas estão morrendo de fome", disse ela, com os olhos fundos.
Resposta da União
Conforme os espaços públicos iam ficando cada vez mais entupidos, em fevereiro o governo federal tomou uma atitude sem precedentes, encarregando os militares de assumir o controle da resposta à crise de refugiados.
"Não há nenhum paralelo histórico para isso. Vamos solucionando as coisas conforme vão surgindo", disse o Coronel Evandro Kupchinski, porta-voz da força-tarefa, enquanto soldados limpavam um estádio que havia sido tomado por venezuelanos, e que seria transformado em um abrigo oficial.
Desde fevereiro, em colaboração com a ONU, o Exército brasileiro constrói abrigos temporários com tendas brancas espaçosas por toda a cidade. Até o final de maio, espera-se que haja onze núcleos com capacidade para 5.500 pessoas.
Os venezuelanos que foram vacinados e registrados em um dos abrigos podem tentar o reassentamento em cidades maiores do Brasil, para onde serão transportados em um voo militar, mas esse processo ainda é lento por causa de restrições de financiamento.
A ONU pediu recentemente que doadores internacionais desembolsem US$46 milhões para resolver a crise deste ano, mas até agora só conseguiu seis por cento desse total.
Artigo: O que podemos fazer com a Venezuela?
No Hospital Geral de Roraima, o diretor Samir Xuad diz que a população diária de pacientes aumentou de 400 para mil nos dois últimos anos.
"Isso exige que meus funcionários trabalhem muito mais, o que fez com que alguns deles acabassem doentes também", relatou Xuad, acrescentando que já havia emagrecido mais de nove quilos por causa do estresse. Suprimentos médicos básicos como seringas e luvas acabaram, e durante os períodos particularmente mais movimentados, os pacientes são postos em macas nos corredores.
"Tentamos fazer mágica, mas é difícil", completou.
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