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Entrevista

Crise política, sanções, repressão: como uma ONG atua na Venezuela de Maduro

Apagão na Venezuela
Mulheres aparecem na sacada de um prédio durante um corte de energia, em Caracas, em 7 de março. (Foto: YURI CORTEZ/AFP)

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O regime de Nicolás Maduro informou que, até agora, mais de 60 mil venezuelanos foram infectados pelo coronavírus. Pelo menos 600 deles morreram por causa da doença. De acordo com levantamento da organização Médicos Unidos da Venezuela, um terço das vítimas era de trabalhadores da saúde. Uma triste e cruel consequência de um governo que não é capaz de fornecer mínimas condições de trabalho aos seus médicos, enfermeiros e a todos os profissionais que estão na linha frente da luta contra a Covid-19.

Feliciano Reyna, fundador da ONG Acción Solidaria, que atua há 25 anos fornecendo diagnósticos e tratamento a pessoas com Aids (e que já antes da pandemia tinha passado a atender pessoas com outras doenças devido à deterioração do sistema de saúde do país) conhece como poucos essa realidade.

“É uma situação real de dificuldade, de deterioração da vida que é difícil imaginar no século XXI”, resume Reyna sobre a crise que a Venezuela atravessa.

Em conversa com a Gazeta do Povo, Reyna fala sobre a deterioração do sistema de saúde venezuelano, como as sanções americanas e a crise política venezuelana estão impactando o serviço prestado pelas ONGs e como o agravamento da crise econômica está refletindo na população. Confira:

O Acción Solidaria trabalha com serviços de assistência a pessoas com AIDS. Como estavam as condições do setor da saúde antes da pandemia e como isso mudou com a chegada da Covid-19?

Feliciano Reyna: Nos anos 2015/16 já havia falhas não somente no tratamento. Havia também uma deterioração agravada de todo o sistema de atenção à saúde, com deterioração da infraestrutura, falta de serviços, de reativos para exames para várias condições. Naquela época também já havia começado parte da migração, então havia carência de pessoal também. Essa deterioração havia começado por volta de 2009, graças a corrupção, quando o primeiro militar que assumiu o ministério da saúde começou um suposto processo de remodelação de hospitais que, dez anos depois, não estava com nenhuma das obras concluídas.

E quando entramos no ano 2016 com essas carências, começamos a definir o contexto venezuelano como de uma emergência humanitária complexa, com base nas definições das Nações Unidas para situações deste tipo, de deterioração institucional grave, de falta de acesso à justiça, de carência das condições para proteção das pessoas em todas as áreas da vida. E então começamos com um processo de implementação de um programa de ação humanitária. Era algo novo para nós, mas fomos nos capacitando. E na situação em que já estávamos, infelizmente chegou a pandemia... e, claro, ela chega a um país em uma situação de enorme precariedade e dificuldade para fazer frente, com condições adequadas, ao desafio do coronavírus.

Quando se trata de condições de saúde na Venezuela, o que mais o preocupa?

No caso das condições de saúde há carências generalizadas. Há uma infraestrutura muito precária, com problemas na unidade física, da falta de água, problemas de eletricidade, de carência de trabalhadores, de reativos, de equipamentos. Há estudos da organização Médicos Unidos da Venezuela que dão conta justamente destas falhas em obter equipamento. Olhando para os dados da organização Monitor de Saúde se vê que, em relação à atenção ao coronavírus, também não há equipamentos de proteção pessoal, não há desinfetantes, estamos realmente em uma situação generalizada de dificuldade. O que, por um lado, faz a resposta ao coronavírus muito deficiente em relação à necessidade. Por outro lado há outras necessidades de saúde que também fazem com que as pessoas não sejam atendidas adequadamente. E também temos visto que os profissionais da saúde estão em condições de vulnerabilidade, com um percentual de falecimentos, de acordo com levantamento da organização Médicos Unidos da Venezuela, que chega a até 30% dos falecimentos por coronavírus.

Quais são as consequências práticas da situação política no trabalho realizado pelas ONGs na Venezuela?

Trabalhamos em um contexto politicamente complicado. Se algo define as emergências humanitárias é um conflito político de base. É uma situação que vai se instalando a longo prazo e que tem sua razão de ser em abusos de poder, na erosão do estado de direito, na falta de acesso à justiça. E aqui na Venezuela há claramente um componente de corrupção que é importantíssimo na hora de explicar a grande deterioração da infraestrutura em geral do país, não somente a da saúde, mas também a alimentar, a empresarial, que tem impacto no trabalho, nos salários. Há essas situações que são geradas por efeitos desses abusos de poder do conflito político. Isto torna complexo o trabalho das organizações. Não escapamos dos riscos, das dificuldades que temos em nossa atuação. Por um lado, há desconhecimento sobre este trabalho, porque é um assunto complexo, e de outro lado encontramos uma série de obstáculos para conseguir levar adiante os nossos programas de ajuda à população.

Como as sanções dos EUA estão impactando o trabalho das organizações não governamentais? Você acha que as sanções são uma forma válida de pressionar a ditadura?

As sanções para nós e para muitas organizações foram de um impacto muito evidente no sentido de dificultar o trabalho. E isto não foi só para organizações, mas também para outros setores, inclusive para pessoas físicas. Há o que se chama de overcompliance para abrir uma conta bancária, para receber uma doação, inclusive, quando as sanções foram se tornando mais gerais, se proibiu viagem direta aos Estados Unidos, seja por avião ou barco. Isso encareceu e tornou mais lento o trânsito de insumos, de doações. A verdade é que foi um impacto progressivo. E sem negar que a deterioração, por exemplo, na indústria petroleira e de outras áreas do país, já vinha ocorrendo tempos atrás por causa da corrupção. Sem dúvidas as sanções do tipo geral e setorial dificultaram as coisas.

Por exemplo, as sanções que estão analisando agora, sobre eliminar a isenção da possibilidade de fazer um swap, um intercâmbio de petróleo por diesel. Se isso se elimina da Venezuela, haverá dificuldade para que chegue o diesel e isso vai ter um impacto gravíssimo.

O diesel serve tanto para o transporte de carga pesada em todo o país, insumos, alimentos, animais que vão às fábricas para processamento, como também no funcionamento de certos tipos de plantas elétricas, como as que têm os hospitais ou as clínicas privadas. Haveria um impacto muito severo e por isso temos advogado, inclusive publicamente, para que se mantenha essa exceção, essa licença para seguir fazendo intercâmbio de petróleo por diesel e que a Venezuela siga recebendo diesel mais além da data limite que colocaram (final de outubro).

A sede da Acción Solidaria foi invadida pela Faes este mês e oito de seus colegas foram detidos.

Essa invasão começou por uma investigação de uma irregularidade que supostamente uma pessoa que era da equipe da organização cometeu. Efetivamente, se ele estava envolvido em algum evento deste tipo, o lógico era que a investigação fosse direcionada a ele e não terminar em um ato claramente de excessos na instalação. Esperamos que em um processo adequado, tivéssemos sido informados da situação irregular que envolvia esse companheiro de trabalho, para que tivéssemos gerenciado a situação adequadamente, mas não foi o que ocorreu. Outras sete pessoas do grupo foram detidas e também apreenderam nossos medicamentos e insumos.

Graças à reação magnífica, solidária e imediata de pessoas, de instituições e de muitos beneficiários do programa, houve uma revolta pública e por ação do Ministério das Relações Exteriores que coordena com as Nações Unidas a resposta humanitária e que tem responsabilidades de coordenação e de proteção do trabalho humanitário e dos atores humanitários, essa situação foi revertida.

[O ministério] Reagiu muito rapidamente e isso levou a que se falasse com a direção do corpo policial que deteve nossos companheiros. E em muito pouco tempo, felizmente, interromperam essa ação, nossos companheiros saíram livres e a carga completa nos foi devolvida.

As ONGs estão recebendo apoio internacional? Como estão obtendo apoio financeiro?

Na Venezuela falta apoio internacional. Não temos como país a capacidade de dar uma resposta a uma situação de tanta complexidade, de tanta dificuldade. A vida está muito precária, há condições econômicas e sociais que estão afetando a grande maioria da população como evidenciado por uma série de estudos e informes, inclusive o do Programa Mundial de Alimentos.

Isto faz com que, para nós, seja muito importante que a comunidade internacional de doadores, que tem capacidade de coordenar com o sistema das Nações Unidas e também bilateralmente com organizações de sociedade civil, que sigam oferecendo apoio ao país.

Ao mesmo tempo, esperamos que haja um componente de esforço por uma solução de mais longo prazo da questão política. Isso não deve interferir com os esforços humanitários, mas sem dúvida é preciso levar isso adiante, porque a raiz de tudo o que estamos vivendo e dos danos que a população sofre está no conflito político.

O que você acha que é necessário fazer, imediatamente, para melhorar as condições de vida da população, dos médicos, das pessoas que precisam de assistência médica na Venezuela?

Falando de insumos, mais esforço em relação à questão dos EPIs (Equipamentos de Proteção Individual). Faz falta, sem dúvida, um esforço gigantesco para que todo o pessoal que trabalha na saúde tenha acesso, desde quem faz a manutenção e a limpeza até o especialista de saúde.

Que história ou momento que o senhor tenha visto nestes dias que representa o que os venezuelanos estão passando hoje?

Histórias individuais são muitas. Quando as pessoas vêm à nossa organização, o que nos contam é que se não doássemos o remédio, simplesmente não poderiam se tratar. Mesmo se encontrassem o remédio em uma farmácia, não poderiam pagar. E isso implicaria possíveis danos adicionais. Então se defendem com alguma outra ajuda que possa chegar com uma remessa (dólar enviado do exterior à Venezuela), mas os familiares que enviam remessas estão em uma situação difícil, também estão afetados pela pandemia - quem tinha algum trabalho informal, também acabou sendo afetado pela crise.

Uma professora universitária idosa e aposentada ganha uma pensão que não chega a 2 dólares  - e se por acaso tem acesso a um benefício social do governo do Sr. Maduro, sua pensão chega então a 7 dólares ao mês. Isso significa que não há jeito de fazer frente à situação adequadamente. Está sozinha, tem sua família no exterior. E não tem dinheiro para o transporte. Se converteu em um problema severo o tema de dinheiro em espécie no país porque se pode pagar com um dólar, mas não devolvem troco, ou seja, acabam perdendo dinheiro e para evitar isso acabam fazendo caminhadas muito grandes.

Isso se nota, se vê nas pessoas a condição física deteriorada, a perda de peso, o cansaço, o peso emocional que é um dos efeitos não tão visíveis, mas que é imenso e faz muita pressão sobre a possibilidade de levar a vida com um mínimo de dignidade.

Quem vive fora de Caracas, sofre ainda mais. Pode passar oito horas por dia sem eletricidade, pode passar de duas a três semanas sem água, pode não ter acesso a um botijão de gás para cozinhar - que acaba custando de 15 a 30 dólares.

É uma situação real, de dificuldade, de deterioração da vida que é difícil imaginar no século XXI, em uma Venezuela que foi um dos países mais ricos da região e com um padrão de vida razoável. O que, claro, não nega desigualdades do passado, mas nunca deste nível de deterioração que temos hoje.

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