Porto Alegre – Desmond Tutu, bispo da Igreja Anglicana na África do Sul e Prêmio Nobel da Paz foi a grande estrela da 9.ª Assembléia do Conselho Mundial de igrejas (CMI), realizada em Porto Alegre. Na plenária sobre unidade das igreja, na qual foi o principal orador, foi aplaudido de pé pelos mais de 4 mil participantes do evento. Corajoso, enfrentou problemas que a maioria das igrejas prefere fingir que não existem. Gays e lésbicas, para o bispo, são tão amados por Deus quanto as pessoas ditas normais. E Deus, para ele, é "Deus" de todos, não apenas dos cristãos". O reverendo Desmond Tutu é um sobrevivente do apartheid, o movimento de segregação racial na África, para cujo fim ele lutou tenazmente. É professor de várias universidades, conferencista consagrado e autor de vários livros, sendo o mais recente "O Sonho de Deus". Em Porto Alegre, onde esteve na semana passada para a Assembléia do CMI, ele concedeu a seguinte entrevista à Gazeta do Povo.

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Gazeta do Povo – Qual a importância da unidade das igrejas para o mundo globalizado?Desmond Tutu – A união não é apenas necessária; é indispensável para o mundo. A igreja dividida só piora os problemas. Veja a Irlanda do Norte. Ali, a divisão das igrejas só agravou o conflito político. Desunião é ruim tanto entre igrejas quanto entre pessoas. No Jardim do Éden, por exemplo, tudo estava bem, havia paz e alegria até começarem as briguinhas entre Adão e Eva, que resultaram em expulsão, pecado, tristeza e dor. Outro exemplo bíblico (há centenas) é o da Torre de Babel: a desunião ali foi responsável pela criação dos vários idiomas que causam essa confusão que temos aqui, nesta assembléia, onde se ouvem inglês, francês, árabe, japonês, chinês e outros que nem identificamos. Já pensou como seria harmonioso e bom se todos nós ainda falássemos a mesma língua?

Por que parece tão difícil a união entre as igrejas?Porque muitos cristãos pensam ser donos de Deus. Mas Deus não tem inimigos. Todos cabem no seu abraço amoroso: feios e belos; brancos e negros; ricos e pobres; os inteligentes e os menos inteligentes; homens e mulheres; gays, lésbicas, Bush e Bin Laden.

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Por que o senhor aludiu a homossexuais, a George W. Bush, presidente dos EUA, e ao terrorista Osama bin Laden assim, com tanta ênfase?Por causa da controvérsia que há sobre o assunto e da minha luta contra o racismo. Como os negros, que não são responsáveis pela cor de sua pele, os homossexuais são vítimas de discriminação. Bush e Bin Laden, por outro lado, são extremos que alguns gostariam simplesmente de excomungar. Poderíamos citar também (o ex-ditador iraquiano) Saddam Hussein…

É verdade que o senhor já disse que Deus não é cristão?É verdade. Algumas vezes pensamos em proteger Deus, colocá-lo debaixo de nosso guarda-chuva; não levamos muito a sério que Deus é de todos. Mas não podemos colocar limites ao amor de Deus. Tive a felicidade de conversar, certa vez, com o dalai lama, uma das pessoas mais santas que já vi. Seus pensamentos, pregações, sua vida, tudo comprova que ele é um homem de Deus. Enquanto isso, há cristãos que ainda hoje acreditam que o apartheid era bíblico. Deus é universal; está no centro do cristianismo, mas também no budismo, no xintoísmo... Ele é poderoso e absoluto; não podemos prendê-lo.

Pode um cristão defender algo como o apartheid e ainda achar que era bíblico?Pois há os que defendem também o racismo, a guerra... Os integrantes da Ku-Klux-Klan (grupo que intensificou a perseguição aos negros do sul dos EUA em meados do século 20) usavam uma cruz nas vestes. Temos olhos muito abertos para os malfeitos dos extremistas muçulmanos, mas esquecemos de ver os dos cristãos. É preciso olhar também as coisas belas, tanto de uns quanto de outros. Elas nos fazem orgulhosos de sermos humanos.

O que o senhor pensa de Robert Mugabe, tido há 20 anos como um libertador e hoje no centro do caos em que vive o país que preside, o Zimbábue, cujos 9,5 milhões de habitantes, 50% cristãos, estão à beira da extinção em boa parte por causa dos assassinatos e outros atos de terror promovidos pelo governo?Penso que algo muito errado aconteceu com ele. Era uma estrela no céu africano; agora promove algo totalmente inacitável: a violação dos direitos humanos.

Ainda sobre o Zimbábue: o maior índice mundial de mortalidade causada pela aids, corrupção desenfreada e milhares morrendo de fome depois que os campos, antes cultivados pelos brancos, agora não produzem mais nada. O que as igrejas cristãs estão fazendo por esse povo?O Conselho de Igrejas Cristãs na África tem feito muitas coisas boas, mas é difícil, muito difícil. Enfrentam tantos problemas… temos de ser gentis no julgamento deles. Eles tentam ser fiéis, mas os problemas são desesperadores.

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Qual a contribuição do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) para a vitória contra o apartheid?Enorme. O apartheid só chegou ao fim pela pressão da comunidade ecumênica internacional em geral e do CMI em particular. Devo muito ao CMI; foi meu mentor, preparando-me para o ministério como secretário-geral do Conselho de Igrejas Africanas, ajudou-me a crescer como pessoa e a ter experiência do mundo. Todas as vezes que me prendiam, me maltratavam, eu chamava meus amigos do CMI e eles corriam em meu socorro.

O senhor acredita que o ecumenismo vai salvar o mundo?Certamente. As igrejas são instrumentos de Deus e, unidas, ficam mais poderosas. Vou lembrar uma historinha conhecida: dois prisioneiros fugiram algemados e na fuga, acabaram caindo numa cisterna cheia. Quando um entava subir, o outro o puxava para baixo. Estavam quase se afogando quando decidiram dar-se as mãos e subir juntos. Só assim conseguiram se salvar. É muito difícil convencer as pessoas a aceitar e respeitar crenças e valores alheios. Mas continuaremos lutando. Lembro outra história; desta vez, do meu pai: quando uma causa parecia difícil e eu perdia a paciência, ele dizia: "Não grite; antes fortaleça os seus argumentos".

É difícil ser Nobel da Paz?Não. É muito bom. Minhas opiniões são mais ouvidas e respeitadas. Sou mais conhecido e isso ajuda na minha caminhada. É verdade que alguns acham fiquei conhecido demais, mas não chega a tanto. Há algum tempo eu estava em São Francisco (costa oeste dos EUA) e uma mulher me abraçou e disse: "Que bom vê-lo, arcebispo Nélson Mandela!"