Após um século de tentativas, os curdos no Iraque conseguiram, finalmente, realizar uma votação pela independência, mas não sem o antagonismo de quase todo mundo na região mais volátil do planeta.
A questão agora é se um protoestado árido e sem saída para o mar, dependente de vizinhos hostis, poderia superar suas próprias deficiências – e a retaliação do Iraque – para construir um caminho viável para a autonomia.
Com uma economia abalada e a escassez de instituições democráticas, as perspectivas já eram bem tênues. Sua grande esperança está nas reservas de petróleo e no apoio americano, mas a Turquia ameaçou bloquear o uso de seu oleoduto, e a relação com os Estados Unidos azedou depois que os curdos rejeitaram os pedidos de cancelamento da votação.
Em vez de negociar e depois procurar o reconhecimento internacional, como Estados Unidos e outros haviam pedido, os curdos perseveraram e foram em frente com o referendo. Porém, a votação, mesmo satisfazendo os curdos emocionalmente, pode simplesmente ter custado suas aspirações nacionais.
Agora, depois que 93 por cento votaram "sim" no dia 2 de outubro, os curdos buscam negociar com Bagdá, que não só se recusa mas exige que o resultado da votação seja anulado, e já isola a região conhecida como Curdistão.
O último país no mundo a ganhar a independência, o Sudão do Sul, em 2011, teve um começo difícil, mas, pelo menos, foi reconhecido internacionalmente e teve o apoio americano. O Curdistão está sozinho em uma vizinhança perigosa.
Para os curdos, a votação foi algo grande e histórico; por ela, declararam ao mundo que este é seu momento e que não vão voltar atrás. "Esse é um passo irreversível em direção à independência", disse Peter W. Galbraith, antigo diplomata americano com laços estreitos com a liderança curda.
Reações
Mas os curdos podem ter subestimado a profundidade da oposição internacional.
Antes mesmo do fim das comemorações, o Iraque e seus dois vizinhos poderosos, Turquia e Irã, imediatamente começaram a trabalhar para anular o resultado. O Iraque teme perder um terço de seu território, além de reservas de petróleo e gás natural. A Turquia e o Irã temem que a independência dos curdos do Iraque encoraje ambições separatistas entre suas próprias minorias curdas.
A reação feroz expôs as vulnerabilidades e deficiências do Curdistão. Os primeiros dias após a votação na região não viram o lançamento das bases para um Estado, mas a luta para escapar de uma situação complicada.
No mês passado, o Iraque se movimentou para assumir o controle da fronteira internacional entre a região curda e a Turquia, segundo as autoridades em Bagdá, forçou a suspensão de voos nos dois aeroportos internacionais do Curdistão e ameaçou fechar o acesso por terra entre a região e o resto do país.
O parlamento iraquiano pediu que o primeiro-ministro Haider al-Abadi acusasse legalmente os líderes curdos que participaram do referendo, além de mandar tropas para a área disputada.
A Turquia e o Iraque estão realizando manobras militares nas fronteiras próximas ao Curdistão. Os turcos ameaçaram barrar a travessia na fronteira, por onde passam produtos importados e alimentos vindos da Turquia e, em menor escala, do Irã.
O Iraque e o Irã planejam manobras militares conjuntas ao longo de sua fronteira no início de outubro, visando garantir o controle iraquiano de três passagens de áreas controladas pelo Governo Regional Curdo, disseram militares iranianos.
Dificuldades
Um governo democrático saudável pode sobreviver, mas o Governo Regional do Curdistão não possui os fundamentos de um Estado democrático, como Estado de Direito, eleições livres e justas, sociedade civil e um legislativo com real poder para desafiar uma liderança executiva dinástica.
"Não temos o Estado de Direito; temos uma monarquia", disse Rabbon Marof, membro do Parlamento curdo e líder do movimento "Não Agora" que se opôs à votação.
O presidente da região, Massoud Barzani, permanece no poder, dois anos depois que seu mandato chegou ao fim. O Parlamento curdo foi paralisado por dois anos até que se reuniu no mês passado para aprovar o referendo, cujo processo Barzani já havia iniciado.
O governo é uma empresa de família: Barzani é filho de Mustafa Barzani, antigo líder curdo. Seu filho, Masrour Barzani, lidera o Conselho de Segurança no governo do pai; seu sobrinho, Nechirvan Barzani, é o primeiro-ministro.
Denise Natali, especialista em Curdistão na Universidade de Defesa Nacional em Washington, diz que a questão para os curdos pode não ser a possibilidade de a região se transformar ou não em um Estado, mas qual o tipo de Estado que se tornaria: "pobre, fracassado e instável".
Zebari admitiu em uma entrevista no mês passado que o governo regional tinha "deficiências", mas disse que era mais democrático e seguro do que o do resto do Iraque; e afirmou que o voto pela independência iria pressionar por mais responsabilidade.
A região tem uma economia enfraquecida, dependente do petróleo. Ela recebe cerca de US$8 bilhões por ano pela produção que passa pela Turquia através de um oleoduto, que Ancara agora ameaça bloquear.
"O Curdistão não está pronto porque é uma confusão econômica. Não vejo a independência acontecendo. A questão é a capacidade, não o desejo", disse Joost Hiltermann, especialista em Oriente Médio do International Crisis Group.
Além disso, mais de metade das receitas do petróleo curdo vem de campos de prospecção de Kirkuk, cidade que se encontra no centro do impasse com Bagdá. As tropas curdas tomaram a cidade multiétnica depois que as iraquianas fugiram de um ataque do Estado Islâmico (EI), em 2014.
Os curdos consideram Kirkuk uma pátria espiritual. "Para os curdos, Kirkuk é como se fosse Jerusalém", disse David L. Phillips, ex-conselheiro do Departamento de Estado, que trabalhou no Iraque por 30 anos.
Mas Bagdá considera a reivindicação dos curdos ilegítima e o Parlamento iraquiano exigiu que al-Abadi enviasse tropas para retomar os campos de petróleo de Kirkuk.
Opções
Os curdos não podem contar com a tábua de salvação dos Estados Unidos, que os protegia contra os carrascos de Saddam Hussein com uma zona aérea proibida em 1991, o que os ajudou a constituir o enclave autônomo.
Washington temia que o referendo afetasse o Iraque e minasse a coalizão liderada pelos americanos na luta contra os militantes do EI. O secretário de Estado Rex Tillerson disse, no mês passado, que os Estados Unidos não reconheciam o referendo, que, segundo ele, "não tem legitimidade", e pediu que iraquianos e curdos "permaneçam focados em derrotar o EI".
Os curdos acreditam ter uma vantagem com os combatentes peshmerga, que desempenharam um papel importante na coalizão. O referendo aconteceu agora em parte porque temiam perder sua vantagem se a coligação expulsasse os militantes do Iraque.
Mas, para a liderança, não há volta. Zebari disse que o relacionamento dos curdos com o Iraque estava indubitavelmente rompido, e os curdos temem o crescimento da influência do Irã sobre o Iraque de governo xiita e as milícias xiitas incorporadas ao Exército iraquiano.
"Em vez de parceria, eles estão defendendo a regra da maioria xiita, o que fará de nós uma eterna minoria e perdedores perpétuos", disse Zebari.
Barzani aposta que um amplo mandato público pela independência proporcionaria uma vantagem contra Bagdá na negociação da separação, mas não há negociações, pelo menos não ainda.
Uma saída possível, disseram analistas, poderia ser uma confederação curda com o Iraque, com o poder constitucional compartilhado. Outra, segundo Phillips, poderia envolver a governança compartilhada de Kirkuk, com o poder distribuído entre grupos étnicos.
Se a questão de Kirkuk fosse de alguma forma resolvida ou deixada de lado, o Iraque poderia estar disposto a negociar a independência para as três províncias que os curdos administram sozinhos, na prática, há 25 anos, mas mesmo assim, disse Hiltermann, o Irã e a Turquia não iam aceitar.
Galbraith disse que, se Bagdá se recusar a negociar, os curdos podem declarar independência unilateralmente em algum momento. "Não é um processo sem restrições. É preciso que haja um resultado que acabe levando à independência", disse ele, refletindo a visão curda.
Zebari disse que os curdos estavam dispostos a negociar os obstáculos existentes no caminho da independência: "Dissemos desde o início que esse não é um projeto livre de risco".