Depois de já ter conhecido mais de 110 países em viagens pelo mundo, o curitibano Guilherme Canever, 38 anos, decidiu que era hora de conhecer os que não existem.
Espera, vamos explicar: muitos desses destinos possuem território definido, população permanente, autonomia governamental e tudo o mais que um país precisa ter, como estabelece o direito internacional. No entanto, ainda não são reconhecidos internacionalmente, seja por conflitos políticos e econômicos, seja por disputas territoriais. Esses países são chamados Estados de facto (na prática), mas não de jure (pela lei).
Chipre do Norte
A história da ilha de Chipre é repleta de reviravoltas: em alguns milhares de anos, já foi de domínio romano, bizantino, otomano e, por fim, britânico, até proclamar independência nos anos 60. Em 1974, novo conflito dividiu o Chipre em dois: a parte sul é a República do Chipre, membro da União Europeia; a porção norte é a República Turca do Chipre do norte, país de facto reconhecido somente pela Turquia.
Guilherme define o país como um museu a céu aberto dado o número de sítios arqueológicos. Compõem a paisagem também igrejas abandonadas, vilas e bases militares. Vale a ida até Famagusta, ao leste da ilha, parando pelas ruínas de Salamis, pelas Tumbas Reais e pelo monastério de St. Barnabas, um dos lugares mais sagrados do Chipre. O inusitado: Varosha, cidade turística pré-divisão e hoje parcialmente destruída e isolada, é o pano de fundo de uma das praias mais bonitas da ilha.
Hoje, existem pelo menos dez países independentes, mas não reconhecidos como tal: Somalilândia, Transnístria, Abkhazia, Nagorno-Karabakh, Kosovo, Chipre do Norte, Palestina, Saara Ocidental, Ossétia do Sul e Taiwan. Desses, Guilherme só não passou pelos dois últimos (veja as fotos das andanças do curtibano).
Universo paralelo
A ideia de viajar esse itinerário inusitado surgiu quando Guilherme excursionava em uma volta ao mundo com a esposa, Bianca. Por acaso, os dois foram parar na Somalilândia, território localizado ao Norte da Somália que declarou sua independência unilateralmente em 1991.
A Somalilândia possui bandeira nacional, brasão de armas, lema, hino, capital e moeda e, apesar de funcionar de maneira organizada e democrática, oficialmente pertence à Somália, país há anos dividido em zonas de intervenção.
Kosovo
Entre os países com reconhecimento parcial, Kosovo figura bem: conta com o aval de 108 estados membros da ONU, faz parte do FMI, do Banco Mundial e outras associações internacionais. Mas, para o governo brasileiro, se você viajar para Kosovo, estará viajando para a Sérvia.
Independente desde 2008, o Kosovo recebe muitos estrangeiros a trabalho e turistas. As cidades mais interessantes são Pristina, a capital, Peje, nas montanhas, e Prizren, antiga capital do reino da Sérvia. Prizren é bem conservada, possui centenas de prédios históricos, muitas mesquitas e igrejas e é uma cidade pulsante, na definição de Guilherme. Já Pristina, embora movimentada, não possuí tantas atrações. Chama a atenção o contraste entre lugares sofisticados e blocos de apartamentos da era comunista.
“É quase um universo paralelo. É o único país do mundo não-reconhecido por nenhum outro, mas precisei fazer visto para entrar, utilizar a moeda local para consumir... E apesar de ficar em uma região da África com grandes problemas econômicos e marcada por conflitos civis, a Somalilândia conseguiu sozinha organizar aquele espaço, torná-lo seguro, funcional”, lembra.
O que é um país?
Essa primeira experiência provocou uma reflexão: o que é um país, afinal? O conceito, embora balizado por regras do direito internacional, na prática se mostra mais flexível – tem a ver com política e também com a cultura e a história de uma população; tem a ver com identificação de um povo com determinado território.
“A ONU reconhece 193 países; a FIFA tem 209 países afiliados; para pedir o visto para os Estados Unidos, você tem que informar sua origem entre 251 opções. Há regiões que declararam sua independência unilateralmente mas permanecem em disputa; há lugares que já foram independentes e hoje estão anexados a outros países; há repúblicas autônomas, como as da Rússia... Ser ou não reconhecido como um país não impacta o cotidiano da população, elas continuam acordando, trabalhando, tomando sorvete, fazendo aquilo funcionar”, observa.
Aqui, ele conta como foi desbravar alguns territórios que, a despeito de uma existência muito concreta, não existem no ordenamento internacional.
Outros destinos
Para saber mais sobre as viagens de Guilherme Canever, acesse o Saiporaí, site que funciona como um diário de viagem. Por lá, você encontra vídeos e fotos de todos os destinos incríveis pelos quais ele já viajou.
Guilherme já publicou os livros “De Cape Town a Muscat: uma aventura pela África” e “De Istambul a Nova Délhi: uma aventura pela Rota da Seda”. Ainda neste semestre fica pronto o livro sobre suas viagens para os “Países que não existem”.
As ex-repúblicas soviéticas
Abkhazia, Nagorno-Karabakh e Transnístria foram repúblicas da União Soviética e precisaram vencer conflitos para se manter independentes, embora sem o reconhecimento internacional - apenas a Abkhazia é reconhecida por quatro países membro da ONU.
Abkhazia (ou Abecásia)
Para chegar à Abkhazia, que em teoria ainda é território da Geórgia, há duas opções para percorrer o trajeto do rio Igur até a entrada do país: de carroça ou a pé. O trajeto da fronteira até a capital Sukhumi, feito de táxi ou ônibus de linha, revela um cenário de pós-guerra: estradas e pequenas comunidades abandonadas, construções destruídas. “Era a região onde viviam os georgianos, que depois foram expulsos em vários conflitos”, explica Guilherme.
No centro de Sukhumi, porém, a cena é outra: cafés descolados, restaurantes, lojas para turistas, hotéis e pousadas lotados. É que a Abkhazia tem um litoral de tirar o fôlego e atrai muitos turistas russos com a combinação de praia, montanhas, cavernas e cachoeiras.
Quanto ao reconhecimento internacional? A maior parte dos locais dá de ombros. “Nós só precisamos da Rússia. O Ocidente acha que precisamos do reconhecimento deles, mas não precisamos. Nossa vida não mudaria nada”, Guilherme ouviu do dono do hotel em que ficou hospedado.
Nagorno-Karabakh
A região montanhosa de Nagorno-Karabakh é ainda hoje palco de disputas históricas entre a Armênia e Azerbaijão, e até o fim da década de 1980 foi controlada pela União Soviética. Como não é possível atravessar pelo Azerbaijão (as fronteiras são fechadas), Guilherme optou por entrar pelo país pelo “lado armênio”, pelas montanhas que abrigam memoriais de guerra, pequenos povoados e monastérios.
Na capital Stepanakert, apesar de “coberta” por cabos aéreos que ligam uma montanha a outra para impedir que aviões voem abaixo do radar, o clima não é tenso: a cidade é arborizada, movimentada e tem wi-fi gratuito. Além da capital, Guilherme passou também por Shushi, hoje destruída pela guerra; e por Agdan, parte mais arriscada da empreitada – uma cidade fantasma, devastada e saqueada e muito próxima da linha de combate.
A aventura colocou Guilherme na “lista negra” do Azerbaijão, que proíbe visitas à região que não controla (a fronteira que Guilherme usou para entrar é considerada ilegal).
Transnístria
“Sonhava com um país congelado no tempo, um pedacinho da União Soviética que tinha sobrevivido”, lembra Guilherme sobre a Transnístria. Para entrar no país, basta fazer o visto na fronteira. Caso permaneça mais de 12 horas, é necessário fazer um registro no escritório de imigração no Centro da capital Tiraspol. A cidade, aliás, parece cultuar o passado comunista: há ruas chamadas “Karl Marxa”, “25 de Outubro” e “Lenina”, muita publicidade nacional, antigos prédios soviéticos e memoriais de guerra.