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O temor sobre a possibilidade de que ocorra um conflito entre a Venezuela e a Guiana aumentou após o referendo realizado no domingo (3), no qual os venezuelanos aprovaram as questões levantadas pelo regime de Nicolás Maduro para anexar a vasta região do território de Essequibo. A região, que corresponde a cerca de 70% da Guiana, é alvo de uma disputa histórica entre os dois países, que remonta ao século 19.
O resultado do referendo, que a oposição a Maduro diz que contou com uma baixa participação da população, foi recebido como uma provocação por parte do governo da Guiana, que já havia manifestado sua oposição à consulta popular de Maduro e reafirmado sua soberania sobre a área disputada, que possui riquezas naturais como petróleo, ouro e diamantes.
Em meio ao aumento da tensão, surge a questão: como seria uma guerra entre a Venezuela e a Guiana? Uma análise das capacidades militares dos dois países revela uma enorme disparidade de forças, que poderia colocar a Guiana em uma situação de grande desvantagem.
Analistas consultados pela Gazeta do Povo apontam que em um cenário de conflito, a Venezuela sai na frente, já que sua força militar é maior e de certa forma mais bem equipada que a da Guiana. Os venezuelanos contam atualmente com cerca de 123 mil militares na ativa e 220 mil reservistas, distribuídos entre o Exército, a Marinha, a Força Aérea e a Guarda Nacional.
Segundo dados do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, veiculados pelo site Poder360, dos 123 mil militares venezuelanos na ativa, 63 mil são do Exército, 25.550 da Marinha, 11.550 da Força Aérea e 23 mil fazem parte da Guarda Nacional.
O país de Maduro também possui um arsenal de armas um pouco mais modernas, que inclui aviões de combate, navios de guerra, 173 tanques, 81 veículos blindados e sistemas de defesa antiaérea em maior quantidade.
Além disso, a Venezuela tem o apoio de países como o Irã e a Rússia, que podem ter fornecido material bélico nos últimos anos para que o país sul-americano pudesse reforçar e atualizar sua capacidade militar, sobretudo na área naval, apesar da crise econômica que enfrenta.
A Guiana, por sua vez, tem uma força de defesa bastante inferior e mais limitada, com cerca de 3.400 soldados - três mil no Exército, 200 da Marinha e 200 da Força Aérea -, que são apoiados por pequenas embarcações de patrulha e algumas aeronaves leves. A maior parte do seu equipamento militar é composto por armas não tão modernas, veículos de reconhecimento e transporte, e alguns tanques mais antigos.
Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, mestre em Geopolítica pela Universidade Nacional de Defesa de Pequim e em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado Maior do Exército, disse que “a Venezuela tem forças militares incomparavelmente mais bem equipadas que a Guiana” nesse momento, e que o país liderado pelo regime de Maduro conta com “forças armadas estruturadas” e com “treinamento superior”.
Gomes Filho lembrou que os guianenses possuem neste momento “apenas seis blindados Cascavel, que foram fabricados na década de 1980, pela extinta empresa brasileira Engesa e algumas poucas peças de artilharia, também muito antigas”.
Segundo Alessandro Visacro, analista de segurança e defesa, a Venezuela pode ter feito “algum esforço de modernização” nos últimos anos com a aquisição de material militar que pode ter vindo da Rússia e do Irã. No entanto, ele ressalta que a crise econômica que assola o país pode afetar a sua capacidade de sustentar por muito tempo um esforço bélico contra a Guiana, especialmente se houver a interferência de atores externos.
Ambos os analistas apontam que o terreno de Essequibo ao longo da fronteira entre os dois países também pode desempenhar um papel fundamental em um eventual conflito, já que ele é composto por florestas tropicais, montanhas e rios, que formam um ambiente desafiador para qualquer operação militar. Isso poderia indicar que a superioridade militar da Venezuela não significa que uma eventual guerra contra a Guiana poderia ser fácil ou rápida.
A vegetação densa e o clima imprevisível podem dificultar a visibilidade, a navegação e o reconhecimento, além de limitar o uso de armas pesadas e o apoio aéreo. O terreno também impõe desafios logísticos, como o abastecimento e a comunicação das tropas.
Segundo Gomes Filho, a Venezuela teria que realizar uma “operação anfíbia”, ou seja, desembarcar tropas pelo mar por conta das dificuldades impostas pela fronteira predominantemente formada por selva com a Guiana.
“Uma eventual ação militar venezuelana, muito provavelmente seria planejada projetando-se poder do mar sobre a terra, no qual a Venezuela desembarcaria tropas em algum ponto do litoral guianense”, disse ele.
Gomes Filho também afirmou que o terreno da fronteira entre os dois países “impede o deslocamento de colunas de viaturas blindadas e dificulta em muito o deslocamento de tropas a pé, assim como o envio dos suprimentos necessários para a manutenção das tropas em combate”.
Visacro disse que a fisiografia da região de Essequibo pode ser um obstáculo para as operações militares da Venezuela de grande escala, que dependem de infraestrutura logística pré-existente, como estradas, pistas de pouso e energia elétrica. Ele lembrou que a melhor forma de chegar na área disputada é passando pelo território brasileiro, o que parece improvável neste momento diante da posição do governo brasileiro de não consentir com uma invasão venezuelana.
Visacro também disse que um eventual conflito entre os dois vizinhos poderia se desenvolver por meio de operações navais, já que a disputa principal está no interesse pelas costas de Essequibo, que é onde se pode explorar o petróleo. No entanto, segundo o analista, a Venezuela poderia enfrentar problemas nas operações navais caso a Guiana conseguisse contar com o apoio militar dos EUA, por exemplo.
Segundo o analista, “militarmente”, o conflito “não é um desafio tão fácil para Venezuela, embora a capacidade militar da Guiana seja praticamente nula”.
Estratégia de defesa
Para tentar se defender, a Guiana poderia promover uma “guerra de resistência” contra os venezuelanos, “utilizando técnicas de guerrilha”, disse Gomes Filho. No entanto, ele apontou que, militarmente, o pequeno país sul-americano “não reúne condições" para "resistir a uma invasão venezuelana" por muito tempo.
Por sua vez, Visacro, destacou que os guianenses, por possuir um “poder político, econômico e militar” muito pequeno, deveriam adotar neste momento como “única estratégia possível” um alinhamento com atores externos.
“O mais importante deles, sem dúvida nenhuma, é os Estados Unidos, que não quer um conflito na região”, disse o analista, observando que os EUA têm sido cautelosos e discretos na sua abordagem sobre a situação de Essequibo.
Ele também mencionou a possibilidade de uma “guerra de resistência” por parte da Guiana, mas ressaltou que essa ação dependeria de vários fatores, como “condições fisiográficas, psicossociais, políticas e econômicas” da Guiana que ainda não estão muito claras.
“A única opção praticamente que a Guiana tem é apelar para o apoio externo e contar com a capacidade de força dissuasória dos EUA para evitar uma escalada do conflito”, disse Visacro.