Então foi um truque. A histeria sobre a separação de requerentes de asilo ilegais e estrangeiros de seus filhos (ou de seus supostos filhos) era em grande parte pretextual. O alvo real da raiva era a política do governo Trump de processar todos os que tentavam cruzar ilegalmente a fronteira pelo delito federal de entrada ilegal.
Em abril, o Procurador Geral dos EUA (cargo equivalente ao do ministro da Justiça no Brasil), Jeff Sessions, anunciou uma política de "tolerância zero" para a entrada ilegal. Dali em diante, virtualmente todos os estrangeiros pegos entrando ilegalmente no país seriam presos para serem julgados, em vez de serem libertados sob sua própria responsabilidade, por um posterior processo não criminal de deportação, ao qual poucos apareceram. (Essa nova política de execução teria sido uma surpresa para qualquer um que tivesse se apaixonado pela mentira de décadas dos defensores de que a entrada ilegal não é um crime.) Sob a nova política, mesmo se o adulto trouxesse uma criança com ele pela fronteira - o costumeiro acessório de um solicitante de refúgio, por razões explicadas abaixo - o adulto ainda seria processado. O adulto seria mantido em um unidade do governo americano aguardando julgamento, enquanto a criança seria colocada em um estabelecimento administrado pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, uma vez que crianças não podem ser mantidas em centros penais.
Imagens de crianças que cruzam as fronteiras, separadas de seu companheiro adulto e chorando ou sentindo-se incomodadas - e a experiência seria, sem dúvida, traumática para a maioria das crianças pequenas - desencadearam a cobertura ininterrupta da crueldade do governo Trump. A MSNBC e a CNN montaram acampamentos de fronteira a partir dos quais repórteres e especialistas pontuaram a crise da separação infantil. Analogias nazistas e do Holocausto circulavam pela Internet; petições de professores universitários invocaram o internamento de nipo-americanos durante a Segunda Guerra Mundial. O México e outros quatro países da América Latina apresentaram uma queixa de direitos humanos contra os políticos americanos e líderes religiosos se juntaram para denunciar o racismo da Casa Branca e o ódio contra os imigrantes.
A tolerância zero continua
Na quarta-feira da semana retrasada, Trump assinou uma ordem executiva que abrigaria adultos estrangeiros ilegais com menores no Departamento de Segurança Interna ou em outras instalações do governo. A política de tolerância zero, no entanto, continuaria. Políticos democratas e defensores dos estrangeiros ilegais imediatamente reclamaram. "Não se engane: o presidente está redobrando sua política de 'tolerância zero”, disse o senador democrata Dick Durbin, em comunicado: “Sua nova ordem executiva criminaliza os requerentes de asilo... Prender as famílias inteiras não é solução, a administração Trump deve reverter sua política de processar as pessoas vulneráveis que fogem de três dos países mais perigosos da Terra.”
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Juliette Kayyem, da Harvard Kennedy School, disse ao âncora CNN Don Lemon na noite de quarta-feira: “O problema real é a decisão de Sessions em processar 100% dos que cruzam ilegalmente a fronteira”. Um apresentador da CNN perguntou ao deputado Adam Schiff, um democrata da Califórnia se a sua posição era de não acusar criminalmente cada pessoa que cruza ilegalmente a fronteira. Schiff respondeu: "Nós não temos que criminalizar todos que estão vindo aqui em busca de asilo." A NPR entrevistou a diretora de Direitos de Migração e Justiça da Comissão de Refugiados para Mulheres, Michelle Brané. "As famílias ficarão tão traumatizadas. As crianças ficarão tão traumatizadas sob a ordem executiva”, disse ela. “Trocar uma forma de trauma por outra não é a solução.”
Armas poderosas
E o lobby das fronteiras abertas possui uma arma poderosa para fazer exatamente isso. O ambiente extraordinariamente complexo de regras e direitos interpolados que regem a política de imigração dos Estados Unidos (o resultado de décadas de litígios contínuos na barra de imigração) contém uma série de mandatos judiciais que derrotaram até mesmo os esforços tímidos da administração Obama em trazer alguma aparência de legalidade à fronteira. Uma ação coletiva de longa duração no Tribunal de Apelações do Nono Circuito dos Estados Unidos, originalmente denominada Flores v. Reno , sustentou que menores estrangeiros não podem ser confinados pelo governo por mais de 20 dias. Este limite de 20 dias contribuiu para a avalanche solicitantes de asilo centro-americanos, com crianças, em busca de asilo na América Central que ganhou força durante o segundo mandato do presidente Barack Obama. As petições de asilo normalmente demoram meses, senão anos, para serem julgadas, dado o longo acúmulo de casos nos tribunais de imigração. Se um adulto atravessa a fronteira sozinho e pronuncia as palavras mágicas de asilo - medo de perseguição em seu país de origem - ele dá uma opção ao governo: prenda o adulto separadamente até que seu pedido seja ouvido e libere a criança depois de 20 dias, ou liberte o adulto e a criança juntos.
O governo Obama geralmente escolhia a segunda opção. A notícia de que levar uma criança ao outro lado da fronteira era um cartão de saída da prisão que isentaria seu detentor tanto de processo criminal quanto da detenção percorreu o México e América Central. Esta alavanca de liberação de crianças, juntamente com o anúncio de Obama em 2012 de que iria conceder anistia aos Dreamers, significava que Obama logo teria sua própria crise de fronteira familiar em suas mãos. Em 2014, 70.000 adultos e 70.000 menores desacompanhados foram capturados entrando ilegalmente nos EUA.
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O governo tentou construir grandes centros de detenção familiares para manter as crianças e os adultos que as acompanhavam, mas o mesmo decreto Flores que atormentou a Casa Branca do Trump impediu esse esforço. Em 2015, uma juíza federal, Holly Gee, nomeada por Obama e a própria definição de um jurista ativista, expandiu amplamente o alcance do decreto original e determinou que a administração liberasse os menores detidos. O Departamento de Segurança Interna alertou que acabar com a detenção da família provocaria outra onda de fronteira. A juiza Gee descartou essa preocupação como “fomentadora do medo”, segundo a Associated Press.
É para a juíza Gee que o governo Trump encaminhará agora o seu recurso para ampliar o limite de confinamento de 20 dias. A chance de ela concordar em fazer isso é zero. A menos que a decisão seja revogada por apelação ou o Congresso mude a lei pertinente, o governo terá duas opções: tentar realizar as audiências de asilo em até 20 dias, ou abandonar sua política de acusação universal e retomar a captura e soltura na fronteira para adultos com crianças. A agilização do processo de asilo exigiria tanto a redução do padrão de concessão de asilo, de acordo com sua intenção original (algo que Sessions já começava a fazer), quanto o aumento dos recursos judiciais. (Estranhamente, Trump denunciou tal aumento na mão-de-obra judiciária). Mesmo assim, cumprir um limite de 20 dias em detenções de asilo será exagerado. Retomar o pega-e-libera, é claro, violaria uma das principais promessas eleitorais chave de Trump. Cinquenta anos de litígios e lobbies estão agora colhendo recompensas imprevistas, inclusive por parte do estabelecimento de fronteiras abertas. Trump se livrou de um confronto, mas um ainda maior está à frente.
Ativismo de esquerda
Por trás deste episódio estavam vários princípios cardeais do ativismo de esquerda: que os grupos de vítimas favorecidos nunca devem ser responsabilizados por suas ações, e que a política deve ser feita com base em reivindicações imediatas de necessidade, sem levar em conta as consequências de longo prazo. A suposição reinante durante o colapso da separação de famílias foi que os adultos que levaram crianças consigo ao outro lado da fronteira não tinham responsabilidade por sua posterior situação. Só o governo americano tinha a culpa de menores estrangeiros serem colocados em centros de detenção. No entanto, a causa da separação da criança foi a decisão do adulto de atravessar ilegalmente os EUA, com a criança a reboque. Se você não quiser se separar do filho do seu filho ou de outra pessoa, não cruze a fronteira ilegalmente. Da mesma forma, qualquer vislumbre da imigração dentro da fronteira é inevitavelmente saudado com gritos que tal aplicação faria com que tal aplicação causaria “medo” aos imigrantes ilegais. Se você não quer temer a deportação, não assuma esse risco, por menor que seja.
Obedecer à lei, no entanto, é algo que nunca deve ser exigir às vítimas politicamente corretas. Se a violação da lei tem consequências negativas, a culpa recai sobre o sistema legal, e não com a decisão de um indivíduo de infringir a lei em primeiro lugar.
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Este princípio também atua nos contínuos ataques ao sistema de justiça criminal: a sobre-representação de negros na prisão é atribuída a atores e instituições supostamente racistas, e não à violação da lei por parte dos criminosos. Se as mães solteiras experimentam taxas elevadas de pobreza, a culpa é de um sistema de bem-estar sem coração, não da decisão de conceber um filho fora do casamento. O pai, é claro, é tão bom quanto inexistente, aos olhos do lobby do bem-estar das mães solteiras. Se as mães adolescentes estão estressadas, o problema está na ausência de creches nas escolas secundárias.
A solução “progressista” para esses dilemas é dar um benefício imediato à suposta vítima que alivie o problema a curto prazo, e os incentivos perversos sejam condenados. Estrangeiros ilegais com crianças devem estar isentos das regras de imigração. A probabilidade de que tal política encoraje mais estrangeiros ilegais está fora de questão. Se ter mais filhos fora do casamento pressiona os benefícios que uma mãe solteira recebe, o governo deveria aumentar os recursos por causa dos nascimentos adicionais. Se aquela mãe solteira e seus filhos aparecerem em um abrigo alegando falta de moradia, dê-lhes um apartamento. Se essa moradia gratuita encorajar mais mães solteiras a procurar o sistema de abrigos, contrate mais apartamentos.
Estranhamente, depois que Trump emitiu sua recente ordem executiva, algumas vozes da imprensa tentaram levantar o problema das consequências não intencionais de regras supostamente humanas. O âncora da CNN John Berman perguntou a Schiff se isentar os estrangeiros ilegais de crianças detidas “incentivariam” essas travessias ilegais. Schiff se esquivou da pergunta: "Bem, não é uma questão simples como se alguém tem um filho ou não." Mas o problema dos incentivos perversos não desaparecerá. A perda de soberania dos Estados Unidos sobre suas fronteiras e a incursão de milhões de camponeses mal alfabetizados e de seus descendentes é o resultado de anos de políticas que favorecem as vítimas, que ignoram a situação pessoal e cortejam as consequências.
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