Manifestante egípcio reza na Praça Tahrir, no centro de Cairo| Foto: Amr Abdallah Dalsh/Reuters

Mídia

Análises apontam os percalços

O senso comum de que as democracias são boas não importam as circunstâncias – postura defendida pelo presidente George W. Bush – não leva em consideração o fato de que as democracias emergentes são os regimes políticos mais violentos do mundo. Mais até do que as ditaduras que por vezes tentam substituir.

De acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem, a realidade é mesmo essa – países que tentam implantar um sistema democrático têm a tendência de viver, num primeiro momento, dias de conflitos sangrentos.

Análises sobre os percalços das democracias emergentes no Mundo Árabe começam a aparecer na mídia e a inspirar reportagens como a da revista Slate ("O verão árabe") e análises como a do professor da universidade norte-americana de Duke, na Carolina do Norte, Timur Kuran, no jornal The New York Times ("As fundações fracas das democracias árabes"). (IBN)

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Enfraquecida, ONU teria de trabalhar mais

"Os países árabes não darão conta do processo democrático sozinhos", diz o professor Semí Cavalcante de Oliveira. Uma solução possível seria uma participação mais efetiva da Organização das Nações Unidas (ONU).

O problema, neste caso, é que a ONU está bastante enfraquecida. "Não se trata de uma atuação tímida [até o momento], ela está incapaz. Na agenda pós-11 de Setembro, a ONU perdeu espaço e voz", diz Sidney Leite. De acordo com o professor, a política externa brasileira acertou ao comentar a situação na Líbia, onde Muamar Kadafi se recusa a deixar o poder resistindo às investidas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

"Quando Brasil se posicionou, construiu uma argumentação definitiva. Não somos nós que vamos dizer como eles devem se organizar, mas devemos compartilhar experiências e dificuldades. O ator principal no processo de democratização será a sociedade árabe. Eles têm de escolher", diz Leite. (IBN)

Pós-revolta é um território de ex­­pectativas, medos e frustrações. A Primavera Árabe derrubou ditadores e, para alguns analistas, os le­­vantes populares devem continuar sacudindo a árvore dos déspotas até que todos venham ao chão. A questão é que a primavera se foi e os povos do Oriente Médio e do norte africano têm de lidar com o dia seguinte e se haver com as consequências da queda de um ditador como Hosni Mubarak, do Egito, ou Zine El Abidine Ben Ali, da Tunísia.

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A Praça Tahrir, que foi tomada por manifestantes egípcios pedindo a saída de Mubarak, hoje abriga protestos contra os militares que estão no poder, responsáveis por organizar as primeiras eleições. No entanto, tudo demora demais para acontecer e os anseios alimentados pela queda do ditador do Egito estão se tornando indignações.

As revoltas são, na melhor das hipóteses, o tranco inicial que põe em movimento um processo trabalhoso e demorado de empurrar um país para a democracia. E por demorado entenda muitas décadas. Pense que o sistema político do Brasil é democrático há 25 anos e, de acordo com Semí Cavalcante de Oliveira, "ainda falta alguma coisa".

O professor de Geopolítica da Faculdade de Administração e Economia (FAE) argumenta que os acontecimentos no mundo árabe eram esperados e, embora custem derramamento de sangue e outros tantos problemas, ainda valem a pena porque criam a chance de uma reorganização política.

Oliveira aposta na queda de todos os ditadores árabes, levando a uma nova ordem mundial nos próximos dois anos. "Mas posso estar falando besteira", argumenta o professor.

Samuel Feldberg, doutor em Ciência Política pela Universi­dade de São Paulo e professor das Facul­­dades Integradas Rio Branco, me­­nos otimista, diz que não apostaria na queda de Bashar Assad – para ficar no exemplo da Síria. "Essas ditaduras mostraram ter muita resiliência para suportar crises", diz. "É necessário aguardar as mudanças."

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Sem líder

Em um texto para o jornal The New York Times, o professor da universidade norte-americana de Duke, na Carolina do Norte, Timur Kuran, afirma que "o resultado imediato mais provável para as revoltas é uma nova série de ditadores ou de partidos únicos" e que os manifestantes "carecem de um líder de estatura".

Também segundo Kuran, en­­quanto países como Egito e Tunísia mostram ter condições de criar democracias efetivas, outros da re­­gião não têm as mesmas condições.

O professor Sidney Leite, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), pós-doutor em conflitos do Oriente Médio e Áfri­­ca, cita a edição da revista Foreign Affair – referência importante na área – em que a capa exibe várias interrogações, perguntando o que virá depois da insurgência popular no Mundo Árabe. "Cada situação deve ser estudada separadamente", diz Leite.

"É um trabalho [implantar uma democracia] de décadas que envolve educação desde a infância, separação clara entre Estado e religião e uma realidade em que os interesses do Estado não serão sobrepostos aos dos cidadãos", diz Feldberg, para quem é difícil responder o que pode ser feito para tornar o processo democrático mais rápido e eficaz nos países árabes.

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As revoltas podem ser uma oportunidade para as sociedades se renovarem e construir um futuro para si, mas, na opinião de Leite, o pós-revolta mostra não existir bases históricas e institucionais para a criação de democracias.

Com ditaduras de 40 anos ou mais, os tiranos tiveram chance de enterrar qualquer possibilidade de uma imprensa livre, universidades de qualidade ou sistemas de ensino sérios, exemplos de instituições fundamentais a uma na­­ção democrática. Para que esta se forme, ainda vai um bom tempo.

Retrocesso

"Existe um conceito defendido por historiadores ingleses de que gosto bastante: o da transição. O novo existe, mas o antigo não morreu. É isso que faz a História se mover. Não é certo se haverá um avanço [nos países árabes], pode inclusive haver retrocessos", explica Leite.

Quando não há elo ligando as pessoas e, para piorar, elas se distanciam por causa de ideias ou crenças – o que é muito comum nos povos árabes –, a transição de um sistema político para outro pode esbarrar na radicalização, com grupos que estavam no poder se recusando a deixá-lo ou a relativizá-lo. Assim aconteceu com os sunitas no Iraque depois do fim de Saddam Hussein (1937-2006).

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