A globalização foi a vilã apontada pelo presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, para atrair a classe média de regiões que já foram potências industriais. A vitória de Trump, amparada nesse discurso, intensificou o debate sobre os efeitos da ampla abertura comercial a partir dos anos 1990 sobre a vida dos cidadãos em diferentes partes do planeta.
No mundo, as nações pobres e ricas se aproximaram com a globalização, e a desigualdade diminuiu. Mas, dentro de cada país, a renda ficou mais concentrada, dizem especialistas. Esse fenômeno afetou não só os EUA, como também a China – alvo preferencial do discurso protecionista de Trump.
E os que menos ganharam com a globalização foram os 20% mais ricos no mundo, ou seja, a classe média e média baixa das economias avançadas, afirma a economista Monica de Bolle, pesquisadora do Peterson Institute e professora da Universidade Johns Hopkins, em Washington:
“O Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia) e a eleição de Trump têm vários matizes, além da distribuição de renda. Essas pessoas se sentiram deixadas para trás. Outros melhoraram muito mais do que eles. O que importa é sua posição relativa. A economia comportamental explica isso. As pessoas preferem ganhar R$ 50 enquanto todo mundo ganha R$ 20, do que ganhar R$ 100, se todo mundo estiver ganhando R$ 200. O sentimento de estar acima dos outros é preponderante.”
Equação
A mudança da estrutura produtiva, o avanço tecnológico e até os valores culturais de cada canto do planeta são a outra parte da história para entender os motivos de parte da população na Europa e nos EUA querer fechar seus mercados e suas fronteiras. Nessa equação, a desigualdade é uma explicação comum. No caso dos EUA, o país, que já era o mais desigual entre seus pares de economia avançada, a disparidade de renda hoje já é tão grande como no Brasil.
Entre os americanos, o 1% mais rico da população concentra 22% da renda, parcela semelhante à apropriada no Brasil pelo topo da pirâmide. Há menos de uma década, os mais ricos americanos concentravam cerca de 12% dos ganhos do país.
Marcelo Medeiros, sociólogo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da UnB, especialista em desigualdade e pobreza, diz que a classe média fabril americana viu a renda estagnar e perdeu a estabilidade com a transferência da produção para a Ásia. Contra esses efeitos, nenhuma medida foi tomada. Ao contrário, políticas públicas aprofundaram a crise: “A estrutura sindical foi destruída, as regras trabalhistas foram flexibilizadas, tornando o trabalho mais inseguro, e não se preparou esses trabalhadores para a economia 3.0. O topo da distribuição de renda, os trabalhadores qualificados, a economia digital e, principalmente, o setor financeiro aumentaram sua renda. Não se mudou a estrutura tributária para redistribuir os ganhos gigantescos dessa parte da população”.
Ásia
Segundo Medeiros, o processo de globalização transformou a China numa potência industrial: “A produção industrial menos sofisticada da Europa, dos EUA e até da América Latina migrou para a China. Não dá para atribuir todas as mudanças à globalização. Mas a Ásia virar a grande potência industrial só foi possível no mundo globalizado”, afirma Medeiros.
A globalização beneficiou os pobres dos países subdesenvolvidos e prejudicou os pobres dos países desenvolvidos, afirma José Márcio Camargo, professor da PUC. “Se, por um lado, houve o empobrecimento dessas pessoas no mundo ocidental, esse processo de globalização reduziu a pobreza no mundo de forma espetacular. Desde 1995, o preço internacional da tevê caiu 96%, e o do brinquedo, 67%, o que significou um aumento monumental de renda real das pessoas. Já os preços dos serviços subiram: os médicos, 100%; matrícula escolar, 197%. Quem estava no setor de educação teve ganho de renda, mas o produtor de TV, não.”
Tudo ia bem enquanto o mundo crescia 6%, 7% ao ano, lembra Camargo. Com a crise de 2008, a insatisfação com a desigualdade aflorou, porque “quando se chega perto da estagnação, acaba a expectativa de melhora, e a única solução é se revoltar”, diz o economista. “A crise torna pior o quadro preexistente, com estagnação de renda, desemprego. Os que mais sofreram com a crise foram os mesmos que já estavam sofrendo com a globalização. Os trabalhadores de Pensilvânia, Ohio, Michigan, da indústria tradicional, antes tinham um bom salário. Hoje, não conseguem o mesmo nível nem de perto, porque a indústria tradicional acabou, e não foi só pela globalização. Toda a transformação tecnológica e a mudança da estrutura produtiva acabaram com o emprego desses pessoas”, complementa Monica.
Sergei Soares, do Ipea, que atualmente é pesquisador visitante do Centro Global de Desenvolvimento, em Washington, diz que a saída dos trabalhadores da indústria para o setor de serviços se estreitou: “O caminho seria se deslocar para os serviços, mas neles há uma concorrência forte dos imigrantes. Estão presos, sem saída. E as políticas sociais foram esvaziadas, até mesmo por pressão dessa mesma população. Hoje, só contam com food stamps”.
Protecionismo
Os especialistas temem uma onda protecionista, mesmo achando improvável estabelecer tarifas de importação muito altas, pois as grandes empresas americanas trabalham em cadeias globais de produção. O último movimento protecionista desse tipo aconteceu na Grande Depressão dos anos 1930. “Trump é um empresário, vive no meio deles. Mas é muito difícil agora saber o que vai acontecer”, afirma Monica.
Segundo Sergei, se os EUA ficarem mais protecionistas, vão sofrer retaliação de outros países, e o mundo se fecha: “Esse é um jogo de perde-perde. Mas, se Trump não oferecer uma resposta a essa população que o elegeu, vai embora em quatro anos”.
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