A Rússia está longe de ser um personagem neutro na nova guerra iniciada em outubro no Oriente Médio: tem laços com o Irã, acusado de ter ajudado o Hamas nos ataques a Israel do último dia 7; recebeu representantes do grupo terrorista em Moscou; e possíveis aumentos no preço do petróleo caso o conflito se expanda pelo Oriente Médio também lhe interessam muito.
Do ponto de vista imediato, entretanto, o governo de Vladimir Putin já conseguiu um belo resultado com a guerra entre Israel e Hamas: o conflito com a Ucrânia, desencadeado pela invasão das tropas russas em fevereiro do ano passado, sumiu das manchetes do noticiário internacional.
O fato foi comemorado pelo propagandista russo Sergey Mardan no seu canal no Telegram. “Esta confusão é benéfica para a Rússia, porque o sapo globalista será distraído da [guerra na] Ucrânia e ficará ocupado tentando apagar o incêndio eterno do Oriente Médio”, afirmou. “O Irã é o nosso verdadeiro aliado militar. Israel é um aliado dos Estados Unidos. Portanto, escolher um lado é fácil.”
O primeiro ponto em que a Rússia é beneficiada é justamente esse desvio da atenção para outro conflito. Nas últimas semanas, Moscou realizou ações que certamente teriam maior repercussão se tivessem ocorrido em outro momento.
Uma delas é um contra-ataque na cidade de Avdiivka, na região de Donetsk, numa ofensiva que já vem sendo chamada de “nova Bakhmut” – em referência à violentíssima batalha contra as tropas ucranianas que terminou com vitória russa.
Além disso, a Rússia realizou um “massivo” exercício nuclear de “resposta a um ataque nuclear inimigo” e seu Parlamento ratificou a saída do país do Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CTBT, na sigla em inglês).
Em entrevista à Gazeta do Povo, o major da reserva e analista de riscos Nelson Ricardo Fernandes Silva afirmou que, além do desvio de atenção, a Rússia também pode ser beneficiada pela divisão de recursos de aliados da Ucrânia.
“Quando você não consegue a devida atenção, é mais difícil conseguir convencer a opinião pública para conseguir mais recursos”, disse Silva.
Antes da guerra no Oriente Médio, a Polônia e o recém-eleito novo governo da Eslováquia já haviam anunciado o corte da ajuda militar à Ucrânia, e nos Estados Unidos, a oposição republicana vinha questionando a aprovação de mais pacotes de auxílio a Kiev.
“Havia a promessa de que os países do Ocidente ajudariam a Ucrânia e ela teria sucesso em expulsar os russos. Só que a situação está ficando mais complexa, porque os ucranianos não estão conseguindo fazer isso, pelo menos não com a facilidade que foi ‘vendida’”, afirmou Silva.
“À medida que isso vai se alongando, vai levando mais tempo, você acaba tendo uma resistência maior a essa ajuda, pelo motivo muito simples de que dinheiro está sendo enviado e isso não está gerando resultado”, acrescentou.
Para complicar a situação, no caso americano, os ucranianos disputam atenção com o país que historicamente é o mais ajudado militarmente por Washington.
“A questão de Israel chama muito mais atenção, os judeus têm uma ligação muito mais íntima com os Estados Unidos do que os ucranianos. À medida que Israel vira o primeiro item da pauta, ele acaba dividindo atenções e acaba tendo mais facilidade para buscar essa prioridade na alocação de recursos”, afirmou Silva.
O governo Joe Biden propôs um pacote orçamentário suplementar de US$ 106 bilhões, com US$ 61,4 bilhões de ajuda para a Ucrânia e US$ 14,3 bilhões para Israel, a ser aprovado no Congresso americano.
Entretanto, no início desta semana, a oposição republicana, que tem uma pequena maioria na Câmara, apresentou na casa um projeto para destinar recursos apenas para Israel, com dinheiro que viria de cortes na Receita Federal americana.
“Israel é um assunto separado”, afirmou o novo presidente da Câmara, o republicano Mike Johnson, que antes havia votado contra a aprovação de mais recursos para a Ucrânia.
Em declarações à imprensa poucos dias após o começo da nova guerra no Oriente Médio, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, disse que esse desvio de atenção é certamente “uma situação perigosa” para o seu país.
“Se acontecem outras tragédias no mundo, há apenas uma certa quantidade de apoio militar para ser entregue, e a Rússia espera que esse apoio seja dividido”, afirmou Zelensky.
“Haverá desafios nas eleições americanas [de 2024], conversei com nossos parceiros e eles disseram que o apoio continuará, mas quem pode dizer se isso vai [realmente] acontecer, ninguém sabe”, disse. Por ora, a Rússia esfrega as mãos e agradece.
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