Enquanto as consequências políticas e militares do motim do Grupo Wagner ainda se desdobram nos círculos de influência, outra ameaça interna volta a surgir na Rússia.
Embora o país de maior extensão territorial do mundo seja majoritariamente eslavo e russo, segundo informações do censo realizado no ano de 2021, existem outros 192 grupos étnicos registrados no colosso eurasiático, totalizando aproximadamente 20% da população, espalhados por todo o seu território, mas mais prevalentes em 21 repúblicas nacionais e quatro oblasts (departamentos) autônomos.
Para se ter uma noção do que isto representa culturalmente, enquanto a maioria do país confessa a fé cristã ortodoxa e no dia 24 de junho – mesmo dia do início da “Marcha pela Justiça” do Wagner – comemorava a festa do nascimento de São João Batista (segundo o calendário juliano), os moradores da República de Sakha (Iacútia), no extremo oriente, se reuniam fora da capital regional para celebrar a festividade do Yhyakh, o Ano Novo dos povos indígenas daquela região.
Neste dia, o governo patrocinou uma série de atividades comemorativas, que misturavam elementos da festividade local com mensagens patrióticas e pró-guerra. Segundo os organizadores, o evento, que durou dois dias, atraiu mais de 230 mil participantes.
De acordo com Sargylana Kondakova, cofundadora do maior movimento antiguerra da região, a Free Yakutia Foundation, o evento oficial foi marcado não pela religião e sim pela política, pois as pessoas ao mesmo tempo receberam doses de patriotismo estatal e absoluto silêncio e desinformação sobre o que acontecia naquele exato momento na porção ocidental da Rússia.
“Pessoas contra a guerra não estiveram lá, mas pessoas que apoiam a guerra e o governo, sim. Elas não tinham ideia do que estava acontecendo no noticiário”, disse a ativista.
Ao mesmo tempo, a cerca de 800 quilômetros a leste da capital Moscou, que estava sob o vigor de um regime de contraterrorismo, as autoridades da república do Tartaristão também realizavam o tradicional festival de verão de Sabantuy, enquanto a república vizinha, o Bascortostão, realizava sua celebração do Dia da Juventude.
Em suma, todas as regiões de origem mongol-túrquica da Rússia comemoravam festividades semelhantes, e todas elas tinham algo em comum: cada um dos líderes dessas regiões evitou comentar sobre os eventos que se desenrolavam naquele exato instante no coração administrativo do país.
Como o avestruz sob perigo
A distância entre o que acontecia na realidade e o que era transmitido nos pronunciamentos oficiais e em canais de Telegram dos políticos destas regiões foi notável, segundo Mariya Vyushkova, ativista e analista de origem buryat (etnia que vive na fronteira com a Mongólia).
“Falar sobre festivais étnicos durante uma revolta é semelhante a transmitir ‘O Lago dos Cisnes’, de Tchaikovsky”, disse ela, referindo-se à transmissão em loop do balé na TV estatal soviética durante a tentativa de golpe de estado de 1991, quando a linha-dura soviética tentou retomar o poder de Mikhail Gorbatchev.
A instabilidade que atingiu o governo federal em Moscou durante o motim do Wagner semeou a confusão e o pânico entre as lideranças das repúblicas étnicas da Rússia, pois, incapazes de tomar partido no impasse que se desenrolava, a maioria delas preferiu fingir que nada acontecia e simplesmente desfrutaram de suas festividades locais, torcendo para que a situação não se agravasse e fosse resolvida de algum modo.
De acordo com o The Moscow Times, a angústia do governo autônomo da República de Sakha foi tal que forçou que todos os meios de comunicação ligados ao Estado se silenciassem durante todo o período do motim.
“Nosso governo ficou realmente assustado, especialmente quando surgiram as notícias do círculo interno de Putin fugindo de Moscou. [...] Algumas pessoas na república acreditavam que Aysen Nikolayev [líder da região] também poderia entrar no avião e desaparecer”, disse Kondakova.
A resposta dos líderes regionais
Embora a princípio temessem tomar posicionamento, com o tempo os líderes das regiões autônomas decidiram jurar aliança ao governo central, mais por medo de uma represália do que por um sincero desejo de estar na Federação Russa. Até mesmo Ramzam Kadyrov, líder da República da Chechênia, demorou 16 horas para finalmente dizer que estaria ao lado de Putin até o fim.
Exceção dentre todos os outros foi o líder da Buriácia, Alexei Tsydenov, que se dirigiu ao Grupo Wagner e seus combatentes em uma mensagem de vídeo. “Vocês sabem que nosso povo inteiro está preocupado com seus entes queridos, não importa se eles estão ou não nas forças armadas ou no Wagner. Estamos observando seus altos e baixos igualmente”, disse o líder da república autônoma.
Tsydenov teve motivos para não declarar aliança a nenhuma das partes conflitantes, pois a região que administra, apesar da relativamente pequena população (em comparação com os russos e outros grupos étnicos mais representativos), é uma das com os maiores números de mortos no conflito.
Mortes desiguais
Embora estatísticas em tempos de conflito sejam por sua própria natureza parte integrante da propaganda de guerra, segundo análises dos sobrenomes (e patronímicos) dos soldados confirmados como mortos, 70% deles eram russos étnicos; ou seja, há mortandade desproporcional com sua participação demográfica na sociedade russa (80%).
Isto se deve ao fato de que a maior parte dos russos étnicos está concentrada nas regiões ocidental e central do país, que são historicamente as mais desenvolvidas.
Enquanto isto, o exército representa para os habitantes das pobres republicas autônomas do oriente e de outras regiões da federação a única oportunidade de fazer a vida, pois ser membro do exército russo não significa apenas adentrar a “classe média”, mas também prestígio social e oportunidades de financiamento de residências e automóveis inacessíveis para outros extratos da população.
De acordo com o analista político russo Dmitry Oreshkin, as próprias estatísticas oficiais de baixas falam por si só. “Qualquer geógrafo pode comparar imediatamente essas informações com os números populacionais dessas regiões e ver os resultados catastróficos”, disse Oreshkin.
“Por exemplo, em Tuva [outra república de maioria mongol], houve um soldado morto para cada 3,3 mil adultos, enquanto que em Moscou esse número é de um para 480 mil adultos. Essa é uma diferença de mais de cem vezes”, exemplificou.
Com a pressão das baixas desiguais na guerra, Moscou tem levado a sério os movimentos secessionistas, reprimindo organizações políticas e sociais minoritárias e perseguindo seus ativistas. Tal tendência aumentou consideravelmente no período imediatamente anterior à invasão da Ucrânia e continua até o presente momento, com grupos autonomistas sendo considerados organizações extremistas ou indesejáveis.
O fim da Federação Russa?
Embora a pressão de revoltas, sabotagens e guerrilhas nestas regiões ainda não ameace o governo central, ativistas destas regiões escapam da lei russa e se organizam em outros países, onde podem debater sua visão para o futuro, como ocorre no antigo Fórum dos Povos Livres da Rússia, recentemente renomeado como Fórum dos Povos Livres da Pós-Rússia (FSNPR).
O crescente ceticismo destas regiões em relação à Federação Russa e à guerra faz com que muitos observadores e ativistas antevejam o desmantelamento daquilo que um dia foi o nascente federalismo russo da era Yeltsin.
De acordo com Oreshkin, a era Putin transformou a ideia de uma Rússia descentralizada em um sistema político hipercentralizado, o que seria a fonte da atual fragilidade da Rússia. “A destruição do federalismo por Putin foi um crime contra a Rússia, [algo] que nos assombrará pelos próximos cinco a sete anos”, disse.
“Ao destruir todas as instituições que poderiam remediar problemas ou desigualdades regionais, Putin criou o potencial para a destruição do país”, acrescentou o analista.
Para os ativistas das minorias étnicas, a guerra da Rússia contra a Ucrânia levou o país a um ponto de virada, onde o pesar pelos filhos mortos em uma guerra incompreensível para sua realidade, a milhares de quilômetros do front, em uma terra distante, pode suscitar transformações tão importantes quanto o colapso do Império Russo ou da União Soviética.