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O ditador sírio, Bashar al-Assad, desfrutou na sexta-feira (19), após quase 12 anos de isolamento geopolítico, o gosto de voltar a ocupar um dos assentos na cúpula da Liga Árabe. Retornar ao trono, no entanto, não saiu barato. Para ser aceito de novo na aliança regional, Assad precisou entregar um dedo do que os especialistas chamam de "narcosestado mais moderno do mundo": uma operação bilionária de produção e distribuição de Captagon – um tipo de anfetamina que invadiu os países do Golfo Pérsico e Mediterrâneo nos últimos anos e, nas ruas, é conhecida como a "droga da Jihad".
Enfiados em sacos de farinha, chá, romãs e até colados entre as camadas de piso laminado, os comprimidos viajam desde laboratórios concentrados na fronteira sírio-libanesa para manter guerrilheiros acordados e sem fome no norte da África, Iraque e Jordânia, mas principalmente para aquecer proeminentes festas da juventude abastada da Arábia Saudita.
Daí, para alcançar a Grécia e a Itália através do Mediterrâneo, é um pulo, o que, consequentemente, acionou o alarme geopolítico global. Os EUA, por exemplo, publicaram no ano passado um ato considerando o Captagon uma ameaça transnacional. O governo do Reino Unido, por sua vez, sancionou indivíduos ligados à produção da droga, afirmando que 80% do Captagon do mundo é produzido na Síria e é uma "tábua de salvação financeira" para o regime de Assad, "no valor de aproximadamente três vezes o comércio combinado dos cartéis mexicanos".
Não é para menos. Nos últimos anos, as apreensões de comprimidos passaram a ser mais frequentes e em números exorbitantes. Uma investigação no final de 2021, do jornal americano The New York Times, mostrou que mais de 250 milhões de pílulas de Captagon foram apreendidas no mundo naquele ano, uma quantidade 18 vezes maior do que a confiscada em 2018.
Em setembro de 2022, a polícia de Riad, capital saudita, anunciou que havia apreendido, em uma única operação, mais de 47 milhões de comprimidos da "cocaína dos pobres", a gota final para uma nação islâmica onde as drogas são consideradas enorme tabu. Já em fevereiro de 2023, um homem foi preso no aeroporto de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, após tentar contrabandear, sozinho, 4,5 milhões de comprimidos de Captagon em latas de feijão-verde.
Para tentar conter a invasão da anfetamina, foi preciso apelar para a barganha diplomática: no dia 1º de maio, em uma reunião de ministros das Relações Exteriores árabes em Amã, os representantes sírios foram pressionados (e cederam) pela Arábia Saudita, mas também pelo Egito, Iraque e Jordânia, a tomarem "as medidas necessárias para acabar com o contrabando nas fronteiras" e levarem "a sério o combate às drogas". Dias depois, esses mesmos ministros votaram pela readmissão da Síria na Liga Árabe. Menos de 24 horas depois, a Jordânia lançou um ataque aéreo no sul da Síria, matando Marai Al-Ramthan e sua família, considerado pelo Observatório Sírio para os Direitos Humanos "o traficante e contrabandista de drogas mais proeminente da região".
Moeda de troca
O governo de al-Assad nega ter qualquer controle sobre essa produção, mas há várias evidências que ligam a droga ao sustento econômico do regime, que está sob sanções internacionais há uma década, desde as violentas repressões da Primavera Árabe que resultaram em uma sangrenta guerra civil, com quase meio milhão de mortos.
Um relatório do Newlines Institute de Washington, datado de abril do ano passado, traçou a estreita relação do regime de Bashar al-Assad com a droga e estimou que os lucros giram em torno de US$ 2 a US$ 5 bilhões (até R$ 28 bilhões). O documento identificou pelo menos 15 laboratórios de produção em grande escala operando em áreas controladas pelo governo.
O estudo assinado pelos especialistas Caroline Rose e Alexander Söderholm também aponta o irmão de Bashar al-Assad, Maher al-Assad, como um dos principais líderes dessa operação. Maher foi relacionado à supervisão de uma fábrica de Captagon em Latakia, a principal cidade portuária Síria, e a centros de fabricação ao longo da fronteira com o Líbano, na cordilheira de Qalamoun. "Elementos do governo sírio são fatores-chave no comércio de Captagon, com cumplicidade em nível ministerial na produção e no contrabando, usando o comércio como meio de sobrevivência política e econômica diante das sanções internacionais", escreveram os investigadores.
Em um artigo para o Instituto Carnegie Endowment para Paz Internacional, o jornalista investigativo especializado em questões sírias Taim Alhajj explicou que as sanções internacionais contra o regime sírio desempenharam um papel importante em esgotar seus recursos financeiros e aumentar o desespero do governo, levando-os a patrocinar redes de tráfico de drogas.
Essa decisão colocou a Síria, em tempo recorde, no topo da lista de países exportadores de drogas do mundo. "O Hezbollah está entre os grupos que operam em solo sírio para regular o comércio de Captagon. Reportagens da imprensa confirmam que algumas áreas nas quais o Hezbollah exerce grande influência, incluindo as aldeias da fronteira sírio-libanesa, desempenham um papel fundamental nas operações de contrabando. Parece que o regime sírio decidiu aproveitar a experiência que o Hezbollah ganhou no controle da produção e contrabando de drogas do Vale do Beqaa, no sul do Líbano, para apoiar sua própria indústria florescente de Captagon", explicou ele.
Na década de 1960, o Captagon era vendido sob prescrição médica no Ocidente como antidepressivo e para tratar uma série de transtornos, como déficit de atenção e hiperatividade. No entanto, devido ao seu alto poder viciante, a substância foi incluída na Convenção das Nações Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, e a maioria dos países descontinuou seu uso. Em 2011, o Conselho Internacional de Controle de Narcóticos chegou a afirmar que a produção de Captagon havia sido abolida mundialmente, apontando apenas a existência de estoques escassos, principalmente na Bulgária.
Eventualmente, novos comprimidos falsificados voltaram a aparecer no Oriente Médio. Hoje, cada comprimido é geralmente vendido por uma média de US$ 5 na Síria, Iraque e Líbano, e por US$ 25 na Arábia Saudita. No entanto, soldados e jovens estudantes podem conseguir a droga por menos de US$ 1.
Um dedo, mas não um braço
À Gazeta do Povo, a especialista em segurança e política externa do centro Strobe Talbott, Vanda Felbab-Brown, expressou ceticismo em relação ao poder da barganha diplomática para conter o comércio de drogas no Golfo. A estudiosa explicou que atualmente a Síria não possui nenhum produto ou serviço que possa compensar os aproximados US$ 2 bilhões em prejuízos que uma possível supressão do tráfico de drogas acarretaria para o regime. "Não há nada que possa compensar economicamente. Portanto, acho muito improvável que o regime simplesmente desista. Minha expectativa é que, de tempos em tempos, quando houver críticas intensas, como dos países do Golfo ou da Jordânia, o regime de al-Assad realizará algumas operações, principalmente contra rivais comerciais e traficantes independentes, como uma demonstração de fachada de que estão reprimindo a produção."
Brown explicou que a operação jordaniana que resultou na morte de Marai Al-Ramthan na semana passada, em território sírio, é um exemplo disso. "É possível que, para essa operação, al-Assad tenha fornecido informações aos jordanianos ou que o regime tenha dado aval para o bombardeio acontecer. Também é possível que a Jordânia tenha simplesmente sentido que tinha tanto o direito quanto a capacidade de fazê-lo sem autorização, devido às negociações diplomáticas com a Síria", detalha.
"No entanto, Al-Ramtan era um traficante importante, mas não está no topo da hierarquia, certamente. O irmão de Assad, chefe da Divisão de Forças Especiais, é talvez o ator mais importante associado ao comércio de drogas, além do próprio Assad. Portanto, eu diria que existem figuras de maior relevância para serem enfrentadas no topo do poder político na Síria, e não acredito que haverá grandes mudanças nisso, mesmo com a reentrada na Liga Árabe", arrematou.