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Retrato de Hugo Chávez, da Venezuela, um dos governos semiautoritários que surgiram da frustração com o neoliberalismo | Eitan Abramovich/AFP
Retrato de Hugo Chávez, da Venezuela, um dos governos semiautoritários que surgiram da frustração com o neoliberalismo| Foto: Eitan Abramovich/AFP

Resenha

Individualismo sem limite

No livro O Mal Ronda a Terra – Um Tratado sobre as Insatisfações do Presente, publicado há pouco pela Objetiva, o historiador Tony Judt (foto) diz que o individualismo sem limites é a causa de muitos infortúnios no mundo. Ele seria o "mal" que ronda a Terra.

Para combatê-lo, o autor reconhece não existir armas adequadas, mas a que poderia chegar perto de ter efeito é a social-democracia. Judt era um intelectual de esquerda que não hesitava em desancar os defensores do neoliberalismo.

Talvez por ser um livro escrito já no fim da vida – e com a doença dificultando demais o processo –, o historiador evita o pessimismo e, numa postura algo ingênua ou sentimental, apela para o bom senso das pessoas, como bem observou o cientista político Adriano Cordato (confira entrevista nesta página).

"O conformismo é tentador: a vida comunitária parece bem mais fácil quando todos concordam com todos, onde a discordância é atenuada pelas convenções da acomodação", escreve Judt. "Há um preço a pagar pelo conformismo. Um círculo fechado de opiniões ou ideias no qual o descontentamento ou a oposição jamais são permitidos – ou aceitos apenas dentro de limites predeterminados e artificiais – perde sua capacidade de reagir a novos desafios a novos desafios com energia ou imaginação."

Judt procura incentivar o debate político e diz que o futuro da sociedade depende do engajamento de seus integrantes, da disposição de discutir e cobrar resultados dos representantes eleitos. Para ele, antes de pensar em soluções para os problemas sociais, políticos e econômicos dos países capitalistas – EUA e Inglaterra, especificamente –, é preciso mudar a maneira de discuti-los. (IBN)

Serviço

O Mal Ronda a Terra – Um Tratado sobre as Insatisfações do Presente, de Tony Judt. Tradução de Celso Nogueira. Objetiva, 216 págs., R$ 34,90.

Antes de morrer em agosto do ano passado, depois de 29 meses sofrendo de esclerose amiotrófica lateral – uma doença fatal que afeta os movimentos voluntários dos músculos –, o historiador londrino Tony Judt (1948-2010), autor do premiado Pós-guerra (Objetiva), conseguiu deixar dois livros prontos.

O Mal Ronda a Terra – Um Tratado sobre as Insatisfações do Presente é primeiro a ser publicado postumamente. Nele, Judt faz uma defesa (com ressalvas) da social-democracia, dizendo que ela "não representa um futuro ideal, tampouco representa o passado ideal. Mas, das opções disponíveis hoje em dia, é a melhor que temos ao nosso alcance".

Para discutir as ideias propostas por Judt, a reportagem procurou o professor de Ciência Política Adriano Codato, da Universidade Federal do Paraná, doutor na disciplina pela Universidade de Campinas (Unicamp).

Entre os temas de pesquisa de Codato, estão regimes políticos ditatoriais e a sociologia política em perspectiva histórica. Dos livros que publicou, destaca-se Sistema Estatal e Política Econômica no Brasil Pós-64 (Hucitec/ANPOCS/Ed. da UFPR).

Tony Judt defende a social-democracia para o mundo atual. O senhor acha que ela pode mesmo ser útil?

Judt fala da social-democracia não como sistema politico, mas como regime social. A vantagem da social-democracia é conseguir conjugar democracia politica com desenvolvimento social. Significa, basicamente, não apenas distribuição de renda, mas garantia de direitos para a maioria das pessoas. Direitos trabalhistas, previdenciários, renda mínima, sindicais, etc. Não se trata de um nome de partido, mas de um modo de existência político-social, um modo de convivência político-social. Um exemplo disso são as democracias escandinavas.

A social-democracia é um sistema alternativo ao socialismo de um lado e, do outro, ao capitalismo liberal. Foi a resposta que os países capitalistas desenvolvidos deram no pós-Segunda Guerra Mundial para a crise do liberalismo politico econômico que terminou nos fascismos, nos nazismos e no comunismo soviético.

Quais seriam as dificuldades de se apostar na social-democracia?

Quando Judt diz que é preciso resgatar a social-democracia, ele está dizendo o seguinte: é preciso fundir duas ideias, a de justiça social e a de democracia política. Ou seja, não dá para ter um regime democrático legitimo quando não há de fato distribuição de renda, compensação social, politicas de bem-estar. E não é possível ter apenas um regime de distribuição de renda, de política social sem democracia, tipo Cuba e Venezuela. É preciso combater o neoliberalismo e o estrago que ele produz na legitimação democrática. Os governos semiautoritários da Bolívia, Equador, Peru e Venezuela são resultado do neoliberalismo dos anos 1990. É preciso combater esse neoliberalismo que desacredita os governos e essa ideia de que a igualdade social é mais importante que a liberdade política.

A social-democracia aparece então como uma utopia possível. O desafio é achar uma via que não pode ser apenas intermediária, que não pode apenas reeditar a social-democracia do pós-guerra com seus problemas políticos, econômicos, fiscais e trabalhistas. Agora, parece ser o início da uma virada na hegemonia ideológica das doutrinas econômicas e políticas neoliberais.

O senhor poderia falar um pouco sobre a experiência social-democrática na Suécia e na Noruega?

São países pequenos com economias menos complexas do que a economia americana, a brasileira, a inglesa e a francesa. São países menos populosos, que resolveram bem não só a questão de infraestrutura como também a da distribuição de renda. Porém, são países onde a taxação sobre ganhos privados é altíssima. O imposto de renda chega a mais de 50%. A sociedade faz um pacto: eu pago muito imposto, mas eu não pago plano de saúde, segurança privada, escola do filho, remédio, dentista e transporte. É tudo subsidiado.

O senhor afirma isso baseado no que ocorre nos EUA?

Sim. Baseado no debate que surgiu com a crise de 2008, envolvendo a desregulamentação de mercados financeiros, ausência de seguros, problemas de previdência... Hoje, o credo neoliberal não é mais um discurso que tem resposta social e eleitoral. Por mais que a Miriam Leitão e o [Carlos Alberto] Sardenberg gritem pela CBN e pela Globonews, isso traz votos para os neoliberais? Não.

Então essa vitória do PT, com Lula e depois Dilma, é uma resposta dos eleitores. O neoliberalismo ofereceu o quê? Telefone celular? OK. Estabilidade da moeda? OK. Mas dá para ter telefone celular, estabilidade da moeda e: Minha Casa, Minha Vida, Luz para Todos, bolsa-família, um pouco de bem-estar e aumentos de salários? Agora, o capitalismo brasileiro está a 400 trilhões de anos-luz de uma social-democracia.

Tony Judt se refere às décadas de 1990 e 2000 como "décadas perdidas" e explica que, nelas, "fantasias de prosperidade e enriquecimento pessoal ilimitado substituíram todas as preocupações com liberação política, justiça social ou ação coletiva". O senhor poderia comentar essa afirmação?

Concordo com ele. É só assistir ao filme Inside Job [Trabalho Interno, vencedor do Oscar 2011 de melhor documentário], que é um pouco maniqueísta e um pouco simplificador, para você ver que o neoliberalismo não é só uma política econômica, é um modo de vida, um modo de as pessoas viverem e se relacionarem, que aposta no individualismo econômico, no bem-estar pessoal, no sucesso profissional, na jornada de trabalho de 18 horas, no enriquecimento para comprar gadgets eletrônicos. É como aquela geração yuppie, do final dos anos 80, que depois foi se transformando e deu o tom dos anos 90.

Judt estava morrendo e faz essa profissão de fé, essa aposta: "tomara que o mundo não fique assim". O mundo capitalista e o do comunismo burocrático, porque não existe horror capitalista maior do que a China.

Para pensar em qualquer tipo de mudança, de acordo com Judt, seria preciso encontrar uma nova maneira de falar sobre os problemas. Ele se refere aos EUA, onde a menção das palavras "social" e "socialismo" consegue gerar pavor em quem ouve.

Porque sugere o oposto de "individual" e "individualismo".

Para Judt, enquanto as pessoas não perderem esse medo de falar do socialismo, enquanto não se engajarem em alguma medida, será difícil ter uma discussão que leve a algum equilíbrio.

Aí está o sentimentalismo e a aposta do sujeito que está morrendo: "Se as pessoas pensarem bem, elas vão ver que há outra solução". Essa não é exatamente a questão. O problema não é de convencimento ou de uma conversão intelectual para outra ideologia, ou convencimento pessoal. A questão que o modelo do individualismo, da exploração, do lucro, contra o gasto do Estado, é uma ideologia poderosíssima. De novo, basta ler os jornalões, ver o que dizem os economistas da PUC. Isso bombardeia de tal maneira a classe média que consome informação que, hoje no Brasil, é muito difícil ter de fato um debate sobre justiça social e distribuição de renda. Porque as pessoas que vivem confortavelmente acham uma indignidade o sujeito ganhar R$ 120 por mês de bolsa-família, coisa que qualquer um de nós gasta em uma garrafa de vinho.

A ingenuidade do Tony Judt é imaginar que as pessoas podem ser convertidas pelo bom senso.

Sem bom-senso, como poderia haver uma mudança?

A única mudança que vai acontecer é com vitórias de partidos de orientação social-democrata, daí a necessidade dos partidos de direita e de centro-direita mudarem o discurso e a política. Veja, é uma questão de viabilidade política: a social-democracia é uma alternativa politicamente viável nos EUA, na zona do euro e na Inglaterra? Se ela for, essas ideias de jus­tiça e generosidade social terão repercussão. Senão, não. Senão, vai haver perseguição de imigrantes na França, preconceito racial na Ale­manha contra turcos, conflitos de valores na In­­­glaterra, problemas de po­­breza extrema nos EUA.

Eu me solidarizo com a utopia de Tony Judt, mas a aposta dele é ingênua. Só vejo isso como resultado de uma luta política intensa.

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