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Turistas visitam Havana, Cuba
Turistas visitam Havana, Cuba| Foto: YAMIL LAGE/AFP

Considerada um ator-chave na crise - e nas negociações de paz - da Venezuela, Cuba está tendo que lidar com seus próprios fantasmas. Depois de duas décadas de relativa estabilidade, a escassez de alimentos voltou a ser um problema diário para os moradores da ilha.

"Temos que estar alertas e conscientes de que enfrentamos dificuldades adicionais e que a situação pode piorar nos próximos meses”, reconheceu Raúl Castro, ex-presidente de Cuba e líder do Partido Comunista, em discurso na Assembleia Nacional do Poder Popular, em abril.

Em uma tentativa de controlar a situação, o regime cubano decretou o racionamento de produtos básicos em 10 de maio. A venda de mercadorias como arroz, feijão, frango e ovos foi limitada para evitar acumulação compulsiva e para distribuir os itens de maneira mais equitativa.

“Outro dia eu estava na fila porque conseguiram cabeça, pata e língua de porco, e dois homens começaram a se agredir. A polícia teve que intervir. É incrível que depois de 60 anos da revolução, as pessoas quase se matem para comprar uma língua de porco", contou a cubana Pinar del Rio Teresa García, de 86 anos, à reportagem da BBC Mundo, em maio.

O presidente Miguel Díaz-Canel disse que os cortes eram necessários porque o “momento difícil exige que definamos prioridades claramente definidas para não voltarmos aos piores momentos do período especial (quando o país viu o PIB cair em 35%)".

A referência à pior crise vivida pela Cuba socialista, nos anos 1990, pelos líderes do país traz terríveis lembranças aos cubanos e suscita a pergunta: Cuba está prestes a reviver os anos de devastação econômica e profundo sofrimento que se seguiram ao colapso da União Soviética?

Os problemas mais urgentes de Cuba

Fator Venezuela. A Venezuela começou a ajudar Cuba financeiramente no ano 2000, logo que Hugo Chávez assumiu o poder. O suporte foi fundamental para a recuperação da ilha após o “período especial”, tanto que chegou a representar, em seu auge, 20% do PIB cubano.

A relação econômica entre eles é, resumidamente, a troca de petróleo venezuelano (subsidiado) por serviços cubanos (médicos, professores, dentistas). Entre 2000 e 2018, 219 mil profissionais cubanos trabalharam na Venezuela. Mas segundo Carmelo Mesa-Lago, professor emérito em Economia da Universidade de Pittsburgh (EUA), o preço dos serviços vendidos por Cuba estava inflado: o regime venezuelano pagava a um médico cubano 27 vezes mais do que recebia um médico venezuelano.

Os valores proporcionaram ao regime cubano uma superávit na relação com a Venezuela, que, em 2017, chegou a perder sua participação de 49% na refinaria cubana Cienfuegos, porque estava devendo à Cuba.

Uma retração de 50% na economia venezuelana nos últimos cinco anos, porém, acabou diminuindo pela metade o intercâmbio comercial entre os dois países. Um estudo publicado em maio por Mesa-Lago e Pavel Vidal Alejandro, professor associado de Economia da Universidade Javeriana Cali (Colômbia), mostra que o envio de petróleo venezuelano à Cuba declinou consideravelmente: de 105 mil barris diários, no auge, em 2012, para 47 mil barris diários em 2019. Como consequência, a exportação dos serviços cubanos à Venezuela também caiu.

A produção cubana de petróleo também estava em queda nos últimos anos. Esses fatores resultaram em cortes no fornecimento de energia para empresas e redução das importações de insumos e alimentos.

A Venezuela, apesar disso, continua sendo o principal parceiro comercial da ilha comunista.

Fim do Mais Médicos. A principal fonte de divisas de Cuba, a exportação dos serviços profissionais, tem diminuído em meio à crise venezuelana, uma vez que estima-se que 75% dos serviços profissionais são contratados pela Venezuela.

Além disso, outros países que tinham acordos com Cuba, como Brasil, Equador, Argentina, Moçambique, Angola e Argélia, cortaram as contratações de profissionais cubanos ou encerraram de vez os acordos.

No caso do Brasil, o regime cubano anunciou a suspensão do Programa Mais Médicos, iniciado em 2013 na administração da petista Dilma Rousseff, depois que o recém-eleito presidente Jair Bolsonaro ameaçou acabar com o programa. Com o fim do acordo, estima-se que Cuba deve perder US$ 332 milhões (ou mais de R$ 1 bilhão) por ano.

Sanções dos EUA. Como fez em outros casos, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reverteu a política adotada para Cuba pelo seu antecessor, Barack Obama. Sua primeira medida, ainda em 2017, primeiro ano de governo, foi proibir os cidadãos americanos de se hospedar em hotéis ou comer em restaurantes administrados pelas forças armadas cubanas.

No decorrer do mandato, Trump fortaleceu as sanções a bancos internacionais que fazem operações com Cuba e chegou a ameaçar colocar a ilha em sua lista dos países “patrocinadores do terrorismo”, da qual Obama a havia retirado em 2015.

Já em 2019, autorizou que cubanos que emigraram para os Estados Unidos entrem na Justiça para reaver propriedades expropriadas na Revolução Cubana - uma iniciativa que ameaça os interesses de multinacionais francesas, espanholas e canadenses, que têm investimentos no país.

A restrição mais recente foi anunciada na semana passada pelo Departamento do Tesouro americano e proíbe o turismo de grupos à Cuba, realizados por meio de viagens em cruzeiros, iates, aviões particulares e voos fretados - o que deve diminuir o setor de turismo, a tericeira maior fonte de entrada de divisas em Cuba (atrás da exportação de serviços e das remessas enviadas por cubanos que moram no exterior).

“As ações dos EUA aumentaram o nível de incerteza e dificuldade de fazer negócios com Cuba”, disse Emily Morris, pesquisadora associada do Instituto para as Américas da University College London.

O efeito, segundo ela, é particularmente forte devido à reação das instituições financeiras que, pressionadas pelas multas das sanções dos Estados Unidos, não querem negociar com Cuba. Dessa maneira, obter financiamento para comércio ou investimento na ilha é muito difícil.

“Agora, a insegurança jurídica, a retórica hostil e as sérias ameaças aumentaram ainda mais a percepção de risco, na medida em que afetam não apenas o sentimento dos investidores estrangeiros em relação a Cuba, mas também as condições de negócios para os traders”, afirmou Morris.

Período especial?

Apesar de todos os problemas citados, a economia de Cuba se manteve em crescimento - média de 1,77% nos últimos cinco anos segundo dados oficiais. Mesa-Lago e Vidal especulam que talvez o regime esteja fazendo uma maquiagem contábil para esconder uma leve recessão, mas afirmam que alguns fatores ajudaram a suavizar o impacto da crise venezuelana, como o crescimento do turismo depois de 2015 e o aumento das despesas do Estado em proporção ao PIB, o que teria amortecido a queda da economia.

Analistas e economistas preveem uma recessão de cerca de 5% para 2019.

“Um conjunto de fatores internos de baixa produtividade econômica, burocracia, junto com as novas sanções à uma economia já estagnada deve levar a uma recessão. Essa recessão, porém, não deve chegar ao que foi período especial”, avalia o professor da Sustentare Escola de Negócios Gunther Rudzit.

Uma diferença fundamental da Cuba de 1990 para a Cuba de 2019 é a diversificação dos parceiros comerciais. Rudzit lembra que há 30 anos a ilha era totalmente dependente da União Soviética e quando ela se desfez, o governo russo não manteve os laços, jogando Cuba em uma crise profunda. Agora, a Venezuela continua sendo seu principal parceiro comercial, mas com uma dependência muito menor em relação ao PIB.

Existem outros fatores que explicam por que Cuba não vai reviver o período especial - pelo menos não tão cedo. De acordo com o estudo de Mesa-Lago e Vidal, diferente dos anos 1990, cubanos que vivem no exterior mandam remessas à ilha que incrementaram a economia em US$ 3,5 bilhões em 2017. O turismo internacional, que era praticamente inexistente, agora gera cerca de US$ 3 bilhões. A produção de petróleo também aumentou dos anos 1990 para cá, reduzindo a dependência da importação de 98% a 50%. E o setor privado ficou mais forte e representa atualmente a 12% do PIB.

Não vai ser um período fácil, porém. “Uma recessão que chegue próximo de 5% é uma catástrofe econômica, o Brasil sabe bem disso pelo que passamos aqui nos últimos anos”, lembrou Rudzit.

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