Ele era um tocador de trombone na Coreia do Norte que gostava de assobiar a balada irlandesa "Danny Boy" para sua esposa. Seu filho se formou em medicina em Pyongyang e queria se tornar professor. Mas em algum momento no final do ano passado, eles desapareceram nos gulags norte-coreanos que detêm um lugar especial de punição para os desertores capturados pelas autoridades chinesas e enviados de volta à fronteira.
"Foi quando comecei a pensar que seria melhor se toda a minha família morresse", disse Heo Yeong-hui, que fugiu da Coreia do Norte em 2014 e pagou contrabandistas para tentar levar o marido e o filho para a China para depois se reunirem na Coreia do Sul. "Eu pensei: eu pagaria para que meu marido e meu filho fossem mortos. Se eles pudessem acabar com suas vidas, eu daria qualquer quantia de dinheiro que eles pedissem. Mas, claro, isso não é possível".
Direitos humanos fora das negociações
Mesmo que a diplomacia avance a um ritmo vertiginoso com a Coreia do Norte, muitos ativistas de direitos humanos e outros especialistas divergem sobre o que não está sendo discutido. Até agora, as conversações evitam cautelosamente uma atenção direta sobre o assombroso histórico de abusos e repressão política da Coreia do Norte. O objetivo é o de manter as conversações com o ditador norte-coreano, Kim Jong-un.
Também pouco discutido nas conversações de alto nível é o papel de Pequim na devolução de desertores capturados pelas forças de segurança chinesas. Qualquer acordo abrangente de paz com Kim deve envolver profundamente a China, o irmão político e econômico do Norte. Mas uma avaliação completa dos abusos dos direitos também abordará a prática da China de declarar os desertores como migrantes econômicos, em vez de pessoas que fogem da opressão - e deportá-las.
"Lamentavelmente, no relacionamento bilateral, uma das coisas com as quais Pyongyang e Pequim concordam continuamente é que eles não querem que os norte-coreanos busquem a liberdade fugindo pela China", disse Phil Robertson, vice-diretor da Human Rights Watch para a Ásia. "Não há versão açucarada para o fato de que a Coreia do Norte tortura sistematicamente todos os norte-coreanos deportados pela China".
Alguns desertores norte-coreanos que conseguiram fugir das autoridades chinesas tornaram-se dissidentes notórios no exílio. Alguns foram recebidos pela Casa Branca em fevereiro. A maioria se esforça para ser passar despercebida. Este era o mundo de Heo.
Ela concordou em contar sua história, abandonando o manto habitual de anonimato usado pelos desertores, que ficam preocupados pelo fato de que falar abertamente poderia colocar em perigo os parentes que ficaram na Coreia do Norte.
Heo sabe que está se arriscando. Sua voz e outras como as dela, acredita, são necessárias para moldar o debate sobre o futuro da Coreia do Norte e os esforços para responsabilizar o regime. Ela se inspira em um ex-diplomata norte-coreano na Grã-Bretanha, Thae Yong-ho, que desertou com sua família em 2016.
Ela o cita. "Cada indivíduo precisa fazer o que puder para livrar o estado de escravidão (que existe no país)", disse Heo, de 58 anos, nos escritórios de Seul do Centro de Bancos de Dados para os Direitos Humanos da Coréia do Norte, uma central de troca de informações para os desertores.
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Ela descreveu os cerca de 30 mil desertores da Coreia do Norte, que estão no Sul, como "uma forma de protesto" em si mesmo. "Mas são as pessoas que ainda estão na Coreia do Norte que precisam despertar", disse ela. "Até lá, as pessoas do lado de fora precisam influenciá-las muito, e só então pode haver mudança".
É impossível precisar o número de desertores norte-coreanos devolvidos pela China. A maioria dos grupos, incluindo o Centro de Base de Dados, afirmam que podem ser centenas de milhares desde os anos 1990. O número de norte-coreanos que tentaram fugir, no entanto, aparentemente diminuiu no ano passado, à medida que a China aumentou as patrulhas na fronteira, reforçando as sanções mais severas da ONU contra o Norte.
A China resistiu aos pedidos internacionais para acabar com as repatriações, apesar da pressão internacional. Um relatório da ONU de 2014 apontou que aqueles que retornaram podem enfrentar o desaparecimento "forçado" em campos de prisioneiros políticos, presos em prisões comuns ou mesmo executados sumariamente.
A história de Heo
Por muitos anos, Heo e seu marido, Choi Seong-ga, e seu filho, Choi Gyeong-hak, viveram em relativo conforto em Hyesan, perto da fronteira chinesa. Heo, uma talentosa cantora, era professora na Universidade de Artes da cidade. O marido tocava trombone no grupo de performance musical Ryanggang, que aparecia em festivais regionais. Ele divertidamente chamava Heo de "irmã mais velha" porque ela era dois anos mais velha. Ela já se apresentou em frente ao primeiro líder da Coreia do Norte, Kim Il Sung, que passava o verão nas montanhas perto de Hyesan.
Durante a fome dos anos 1990, a família teve algum consolo ao pensar que todos no país estavam sofrendo. Para ganhar um pouco de dinheiro extra, Heo começou a fazer álcool caseiro a partir de milho podre. Com os lucros, compravam arroz.
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Nessa época, o marido de Heo encontrou uma partitura de "Danny Boy". Tornou-se sua música particular, já que a música era praticamente desconhecida no Norte.
"Para outros, provavelmente parecia que eu estava vivendo uma vida confortável, enquanto havia pessoas morrendo de fome ao meu redor", disse ela. "Eu vivi ao lado daqueles que estavam morrendo de fome. Então comecei a pensar: 'Como eu deveria estar vivendo minha vida neste tipo de mundo?'".
A decisão de fugir
A vida dela deu um giro brusco há cinco anos. O Ministério de Segurança do Estado pediu a ela que monitorasse uma de suas alunas, uma jovem que ficou sob suspeita por causa de uma irmã na China. Heo se recusou.
"Eles tentaram me assustar", disse Heo. "Eles disseram: 'Seu filho é mais importante que uma estudante?' '' Heo ficou abalada. Ela sugeriu que a aluna tentasse fugir da Coreia do Norte. “Era só uma questão de tempo até as autoridades te prenderem”, disse Heo.
Agentes de segurança descobriram e Heo e a estudante foram enviadas para um centro de detenção. Seriam 76 dias para Heo. Ela disse que nunca foi espancada ou interrogada, mas foi deixada em uma cela com outras pessoas. A sede ficou tão intensa que alguns prisioneiros beberam a urina dos outros.
"Eles queriam me intimidar, me ensinar a saber do que eles eram capazes de fazer", disse ela. "Para mim, ver [os prisioneiros] era como tortura, ouvi-los sendo espancados e chorando depois de serem interrogados".
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Quando Heo foi libertada, sua mente havia se transformado. Havia duas escolhas: ou tentar fugir da Coreia do Norte ou se matar, pulando do quarto andar do prédio onde morava.
"Mesmo depois de tomar a decisão de desertar, pensei muito”, disse ela. "Eu não podia contar ao meu filho, nem ao meu marido. Então eu pensei: 'Deixe-me fazer primeiro. Deixe-me passar primeiro pela perigosa jornada e, se [a Coreia do Sul] for um lugar que valha a pena, eu os trarei".
A estudante presa com Heo tinha contatos militares e pagou o equivalente a cerca de US$ 1.800 para ter o caminho livre na fronteira. As duas mulheres atravessaram o rio Yalu em 26 de setembro de 2014, na China. Elas conseguiram chegar à Tailândia e embarcaram em vôos para Seul. Heo chegou na Coreia do Sul em 18 de dezembro de 2014.
A tentativa de tirar a família da Coreia do Norte
O planejamento para trazer o marido e o filho começou imediatamente. Heo encontrou um emprego como governanta em um resort na ilha de Jeju. Mas ela viu que o preço exigido pelos contrabandistas era muito elevado. Eles queriam US$ 20 mil por pessoa para tirar o marido e o filho da Coreia do Norte e outros US$ 12 mil para levá-los à Tailândia. Amigos concordaram em emprestar-lhe o dinheiro.
Heo conseguiu que o corretor se identificasse com o marido usando uma letra de uma canção folclórica japonesa que ela costumava cantar para o filho. No final de setembro de 2016, o marido e filho de Heo, então com 28 anos, saíram da Coreia do Norte. Heo recebeu um telefonema de seu marido em 28 de setembro. Eles estavam em algum lugar entre Changbai e Yanji, perto da fronteira com a Coreia do Norte. Foi a última vez que falou com ele.
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Em algum momento, eles foram enviados de volta à Coreia do Norte. Eles foram vistos em meados de 2017 no Ministério Provincial de Segurança do Estado em Hyesan. O apartamento deles foi tomado pelo estado.
"Talvez se eu nunca tivesse sido presa, eu nunca teria começado a pensar assim", disse ela. "Mas eu fiz. E quanto mais eu sabia sobre [a Coreia do Norte] mais eu não queria viver lá. Eu só queria fugir. Se eu morresse ou fosse embora, eu só queria fugir".
Heo começou a cantar "Danny Boy". Ela cantou quase toda a música antes de começar a chorar.
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