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No próximo domingo (15), a população da Bolívia vai às urnas eleger juízes para o Tribunal Constitucional Plurinacional, o Tribunal Supremo de Justiça, o Tribunal Agroambiental e o Conselho da Magistratura.
Será a terceira vez que magistrados serão escolhidos no país por voto popular, mudança implementada durante o governo de Evo Morales (2006-2019). As eleições judiciais anteriores foram realizadas em 2011 e 2017.
A votação ocorre em meio a controvérsias, não só pelas disputas dentro da esquerda entre Morales e o presidente Luis Arce (seu ex-aliado), mas por problemas nas eleições judiciais em si.
O pleito deveria ter ocorrido em 2023, mas o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) disse que não seria possível realizá-lo no ano passado porque o Parlamento da Bolívia não havia concluído a pré-seleção dos candidatos e não enviou as listas à corte para a organização das eleições.
Além disso, este ano, o Tribunal Constitucional cancelou as eleições dos magistrados da própria corte para os departamentos de Pando, Cochabamba, Santa Cruz, Beni e Tarija – no tribunal, há um juiz por departamento, equivalentes a estados no Brasil –, além das vagas no Tribunal Supremo de Justiça para Beni e Pando.
O argumento é que nas listas de candidatos não foram contemplados critérios como igualdade de gênero e autoidentificação indígena.
Em entrevista à Gazeta do Povo, Juan Pablo Chamon, cofundador e diretor-executivo do think tank Libera Bolívia, explicou o que está por trás de tais movimentos e afirmou que a escolha de magistrados por voto popular no país só tem servido para perpetuar a esquerda no poder – situação que não deve mudar com a eleição de domingo, projetou.
Confira os principais trechos da entrevista:
A Lei do Regime Eleitoral da Bolívia proíbe os candidatos das eleições judiciais de fazerem campanha, mas parece que essa regra não tem sido igual para todos, não?
Sim, eles podem fazer [propaganda] através de meios oficiais, mas o que tem acontecido é que os candidatos ligados ao governo, que são maioria, aproximadamente 80% dos candidatos, têm feito campanha por todos os meios, nas redes sociais, em alguns meios de comunicação, nas ruas etc.
E isso não só gerou preocupação, porque não houve nenhuma ação do Tribunal Supremo Eleitoral para inabilitar esses candidatos, que é o que indica a lei, mas também demonstrou que não há igualdade na disputa. Nem todos os candidatos têm as mesmas condições. Para alguns, a lei é muito firme. Eles têm que ter muito cuidado com o que dizem, e os amigos do governo, não.
Então, para os candidatos que não têm relação com o governo, para eles a fiscalização funciona. Eles não estão conseguindo fazer propaganda, fazer campanha.
Sim, para eles a fiscalização é rigorosa. Se amanhã alguém de um cargo de muito destaque vier dizer que tal candidato não é próximo do governo, o mais provável é que o desqualifiquem, ou se alguém sair para pedir voto para um deles [candidato não ligado ao governo], o mais provável é que ele acabará desqualificado no domingo.
Isso mostra algo mais profundo. O sistema de eleição dos altos juízes das cortes é muito ruim. Não existem as verdadeiras condições para que seja possível ter os juízes mais honestos, contar com os instrumentos institucionais que garantam uma eleição transparente, e além disso, uma decisão super delicada é delegada à população, que é mal informada, pelas próprias regras do jogo.
Então, de certa forma, estamos numa armadilha e o que o governo faz, o que faz o poder político é tentar legitimar através do voto da população a eleição de altos magistrados para dizer que foi o povo que os elegeu, portanto, eles não têm nenhuma responsabilidade a respeito.
E há outras duas coisas que também são importantes. Tanto em 2011 como em 2017, os votos nulos e brancos “venceram” a eleição, foram mais de 50% dos votos e provavelmente nesta eleição acontecerá a mesma coisa.
Então, os mesmos juízes ou altos magistrados dos próprios tribunais eleitos não tiveram a devida legitimidade que se pretendia, mas mesmo assim assumiram os seus cargos. Eles levaram o sistema de Justiça boliviano, a partir desse método, a ser um dos três piores do mundo.
E este ano também houve as questões do adiamento da eleição e da suspensão da votação para algumas vagas...
Estas eleições deveriam ter sido realizadas em dezembro do ano passado. E foi a mesma Justiça que determinou o adiamento delas, gerando mecanismos através das suas próprias decisões judiciais que lhes permitiram [aos juízes] se autoprorrogarem no poder praticamente durante todo este tempo, gerando um vácuo e crise institucionais que mais tarde custarão muito caro para os bolivianos, porque, no fim das contas, não saberemos se os que foram juízes ao longo de todo o ano de 2024 estavam legais ou não, e isso será determinado em algum momento.
Além disso, no Tribunal Constitucional, por exemplo, a Bolívia tem nove departamentos e em cinco as eleições foram suspensas. Por quê? Porque os cinco magistrados desses departamentos se organizaram para continuarem a ser maioria e a partir das suas próprias decisões judiciais, suspenderam as eleições nesses locais. Portanto, só vão entrar quatro [juízes] e vão encontrar uma maioria já estabelecida e que está praticamente se autoprorrogando no poder a partir de suas próprias decisões judiciais.
Este, em termos gerais, é um sistema que gosto de definir como um sistema-armadilha. Onde praticamente todos os espaços onde você cai acabam sendo a favor de todos esses juízes, magistrados e outros que se mantêm nesses espaços a partir de sua conveniência e convivência, além do favorecimento da classe que mais poder tem, os políticos no Poder Executivo, ministros, presidentes...
Recentemente, Evo Morales sofreu algumas derrotas na Justiça, como a proibição de concorrer à presidência em 2025 e a destituição da presidência do partido Movimento ao Socialismo (MAS). Mas também houve as prisões de Jeanine Añez, Luis Fernando Camacho e outras figuras da oposição. Como está essa questão da independência do Poder Judiciário boliviano depois da instituição das eleições judiciais, que serão realizadas pela terceira vez?
Na Bolívia, não existe independência do Poder Judiciário. Não há independência de poderes. O que o Poder Judiciário fez nos últimos 15 anos foi obedecer às ordens do Poder Executivo. Ou seja, quem está no governo foi quem sustentou as mesmas decisões da Justiça. Embora possa ter havido algumas decisões que não favoreceram Evo Morales, o que a Justiça fez ao longo deste tempo sempre foi favorecer o mesmo grupo de poder que depende de Evo Morales.
Há uma sorte e uma série de aberrações jurídicas dentro das normativas bolivianas, que o Tribunal Constitucional em certos momentos determinou, que certamente serão estudadas por todo o mundo, de tão absurdas que são. Por exemplo, o fato de permitir a Morales se candidatar indefinidamente à presidência, simplesmente porque é um “direito humano”, ou de várias decisões sem pé nem cabeça, que acabaram destruindo as instituições do país.
Hoje, a Justiça diz o que é conveniente para o governo. Evo Morales pode estar longe do poder e, portanto, isso [falta de independência do Judiciário] não o favorece tanto. Mas é certo que há perseguição política aos opositores, que há presos políticos na Bolívia, que há abuso [do mecanismo] da prisão preventiva, quando se trata de processos contra pessoas que pensam diferente do governo.
Quais têm sido as consequências disso?
Isso levou, em primeiro lugar, ao fato de que, dentro dos índices que medem o nível de qualidade institucional da Justiça, somos classificados como um dos três piores do mundo. Segundo a [ONG] World Justice Project, a Bolívia ocupa, em alguns casos, [o posto de] segunda pior Justiça do mundo e em outros a terceira, apenas acima do Haiti, da Venezuela, em alguns casos.
Além disso, o que acabou gerando é, a partir da instrumentalização, o que geralmente se chama de lawfare, a utilização de mecanismos legais para perseguir quem pensa diferente ou para favorecer quem está no poder. Então, o próprio sistema provou ter muitas falhas e infelizmente não dá para enxergar possibilidade de que com esta nova eleição as coisas possam mudar muito.
Este ano, no México, houve uma modificação na legislação, para que os juízes da Suprema Corte e também de tribunais inferiores também sejam eleitos por voto popular. O senhor acha que o México seguirá o mesmo caminho da Bolívia?
Definitivamente, o México seguirá um caminho semelhante. Esta é uma forma que tem se mostrado eficaz para que a classe política dominante, ou seja, aqueles que estão no poder, especialmente no Poder Executivo, possam manobrar a Justiça.
Às vezes, parece que o que aconteceu no México é inocente e é uma tentativa de tornar a Justiça mais transparente, como se tentou legitimar na Bolívia, como mencionei, o que foi dito foi: “Vamos transferir a decisão ao povo para que ele tome a decisão de eleger os altos magistrados dos tribunais através do voto popular”.
Parece bom, eu sei, mas na prática o que acaba acontecendo é que a mesma política, primeiro, define quem são os candidatos, e segundo, em termos gerais, são eleitos todos da mesma cor [ideológica] e do mesmo partido.
Para mim, isso faz parte de um plano perverso que já funcionou na Bolívia. Não se trata de uma questão inocente de tentar um novo método para tornar a Justiça mais transparente, mas sim de copiar o modelo que permitiu a um grupo de pessoas em outro país permanecer no poder quase indefinidamente através da instrumentalização da Justiça.