Eles têm os mais simples dos sonhos: ver ruas conhecidas mais uma vez, caminhar ao longo de um rio que está no centro das memórias da infância, ou fazer uma grande festa regada a vinho.
Esses sonhos pertencem a pessoas que arriscaram tudo para fugir da Coreia do Norte e que, no exílio, se tornaram conhecidos por relatarem os abusos de direitos e a repressão do regime de Kim Jong-un.
Mas agora, diante da cúpula entre Kim e o presidente dos EUA, Donald Trump, em Cingapura, eles estão considerando uma questão que até recentemente parecia insensata de se fazer: eles poderiam um dia voltar para casa?
Perguntas como esta se espalharam pela comunidade de cerca de 30.000 desertores norte-coreanos em Seul e em outros lugares do mundo. Oito deles - seis que moram na Coreia do Sul e dois nos Estados Unidos - encontraram-se com Trump em fevereiro no Salão Oval. Eles compartilharam suas histórias de prisão, tortura e sofrimento em um momento em que o conflito militar entre EUA e Coreia do Norte parecia mais provável do que a diplomacia. O Washington Post conversou com quatro desses desertores nesse novo momento histórico, que pode mudar os rumos da história.
O mensageiro
Jung Gwang-il está sempre tentando descobrir como cruzar a fronteira da Coreia do Norte. Não porque esteja tentando voltar para lá, mas ele está sempre procurando novas rotas e métodos para enviar a sua terra natal pen drives, cartões de memória e outros pedaços de tecnologia que mostram como é o mundo do lado de fora: filmes de Hollywood, shows sul-coreanos e testemunhos filmados de outros desertores norte-coreanos.
"Até que as pessoas na Coreia do Norte tenham direito à informação, eu continuarei", disse Jung, 55, cujo grupo “No Chain” já usou balões e contrabandistas e considerou usar drones para mandar material para dentro do território norte-coreano.
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Em 1999, ele foi preso na Coreia do Norte por acusações de espionagem, possivelmente por causa de negócios indiretos com sul-coreanos via China. Ele nega as acusações, mas disse que confessou sob tortura. Depois vieram três anos no campo de prisioneiros políticos de Yodok. Desenhos de um ex-prisioneiro de Yodok em um relatório da ONU incluem imagens de homens famintos comendo ratos.
Um ano depois de sua libertação, ainda emagrecido e fraco, ele atravessou o rio Tumen para a China. Mais tarde foi para a Tailândia e, finalmente, para Seul.
Jung é incansavelmente otimista sobre como seu ativismo ajuda a diminuir a censura e a propaganda. Mas seu otimismo não se estende à cúpula. "Zero expectativas", disse ele.
"Eu gostaria de ir para casa, mas sei que não posso enquanto Kim Jong-un estiver no poder", disse Jung. Os riscos, ele acredita, são muito altos. Seu retorno poderia trazer novos problemas para seu irmão, um superintendente de estado em uma fábrica. Seu irmão uma vez inventou uma história que Jung não era nem mesmo um parente de sangue.
Jung foi algumas vezes até a fronteira entre a China e a Coreia do Norte para contemplar a sua terra natal. No lado chinês, ele beberia um pouco de soju, um licor coreano popular, e lembraria de jogos de infância e patinação no gelo em Hoeryong, no nordeste da Coreia do Norte.
"Eu deixei este lugar com o coração partido, e sempre que vejo isso eu gostaria de voltar. Houve também momentos em que chamei meu irmão no local", disse ele, referindo-se a um ponto na China perto da fronteira. “Já que estava tão perto de onde ele está, eu disse a ele: 'Se eu acenar aqui, ele poderá me ver'".
A escritora
Lee Hyeon-seo, de 38 anos, estava em Londres em abril, quando soube dos planos para o primeiro encontro entre Kim e o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, que ajudou a abrir portas diplomáticas para a cúpula de Cingapura.
"Eu estava realmente atordoada. Eu estava olhando para o céu e pensando: 'Se isso realmente acontecer e com o tempo, talvez eu possa realmente visitar o meu país de origem e ver todos os meus parentes e amigos", disse Lee, que narrou história de sua vida na Coreia do Norte e sua fuga no livro "The Girl with Seven Names" (A Garota de Sete Nomes, em tradução livre).
"Eu realmente tive essa esperança", disse ela, falando em inglês, língua que aprendeu desde que chegou à Coreia do Sul em 2008, após uma década vivendo sob identidades falsas na China. "Mas também, ao mesmo tempo, eu realmente não quero ter o sonho de (regressar) porque, quando isso falhar, eu vou me machucar novamente".
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Lee saiu da Coreia do Norte em 1997, viajando sobre o congelado rio Yalu até a China. Ela se mudou para a Coreia do Sul em 2008 e se juntou a outros desertores em solicitar ao Ocidente a derrubada da dinastia Kim. Só então ela poderia novamente ver sua cidade natal, a cidade industrial de Hyesan.
Mas agora ela se pergunta se Kim poderia permanecer no poder se ele tomasse medidas para acabar com décadas de repressão política e isolamento.
"Eu não sei, talvez 10 anos depois, ou talvez 20 anos depois - mesmo que Kim Jong-un controle o país, ele não poderá realmente controlá-lo", disse ela. "Então, talvez esta seja a primeira opção, o primeiro passo."
Lee está mais preocupada com sua mãe, que lamenta sete irmãos perdidos devido a fome e repressão política ao longo dos anos. Sua mãe, que chegou à Coreia do Sul há sete anos, quer desesperadamente voltar para casa.
"Não posso dar a ela garantia de um reencontro, mas posso pelo menos tentar", disse ela. "Ela está envelhecendo e sabe que, certamente, em sua vida, o tempo talvez não seja suficiente para que ela possa rever seus parentes".
O homem de muletas
A maior fotografia no escritório de Ji Seong-ho é uma imagem em preto-e-branco, granulada e ligeiramente fora de foco, de sua turma em um passeio quando ele tinha 10 anos de idade. Os estudantes se reuniram em fileiras sob uma estátua de Kim Jong Suk, um guerrilheiro norte-coreano e a primeira esposa do então líder Kim Il Sung.
Ji agora se pergunta se algum dia ele poderá voltar àquele mesmo local e celebrar um ponto de virada para a Coreia do Norte com outros desertores e ex-presos políticos.
"Ainda não sei exatamente o que vou fazer quando [a reunificação] chegar, mas ajudarei o povo norte-coreano a se adaptar à democracia e à liberdade", disse Ji, 36, que lidera um grupo de Seul chamado Now Action and Unity for Human Rights, cujo financiamento é coberto por grupos que incluem a ONG americana National Endowment for Democracy.
Tal retorno traria de volta um dos mais renomados rostos internacionais de dissidência contra o regime de Kim.
Em 1996, em meio à fome incapacitante, Ji tentou roubar alguns pedaços de carvão de um pátio ferroviário para trocar por comida. Ele desmaiou de fome e foi atropelado por um trem, forçando os médicos a amputar o braço esquerdo e a perna esquerda sem anestesia. Uma década depois, ele cruzou a fronteira para a China, mancando em muletas de madeira rústicas e próteses rudimentares. No discurso do Estado da União de Trump, em janeiro, ele estava na galeria VIP e segurava as mesmas muletas.
"Quando eu voltar para minha cidade natal quero dizer às pessoas que, mesmo que eu levasse uma vida relativamente melhor aqui, nunca me esqueci de você", disse ele.
Depois, um pouco de diversão para comemorar. "Acima de tudo eu quero fazer um grande banquete", ele sorriu. "'Olha, eu vim com um caminhão cheio de arroz e carne. Vamos aliviar a nossa fome com comida deliciosa!'. Haverá também vinho na festa. ‘Olha, isso é algo chamado vinho. Apenas a família Kim costumava aproveitar isso, mas agora você pode saboreá-lo também’".
Em suas palestras ao redor do mundo, Ji encontra inspiração no discurso “I Have a Dream” (Eu tenho um sonho) de Martin Luther King Jr. Ele gosta da mensagem de que a mudança pode vir das ruas, das igrejas, de qualquer coisa e em qualquer lugar que ajude a quebrar o medo. Isso inclui os movimentos da livre iniciativa.
Em sua mesa há um cofrinho de plástico verde com algumas moedas dentro, onde se lê: “para a reunificação”.
A professora
Quando Hyun In-ae se permite imaginar um retorno à Coreia do Norte, ela vê uma sala de aula. Ela está dando uma palestra sobre sociologia e feminismo. Entre os alunos, ela gosta de pensar, muitos serão mulheres, que estarão descobrindo suas vozes políticas e cívicas em uma Coreia do Norte diferente.
"O maior problema é que as mulheres norte-coreanas nem sabem que têm o direito de falar, mudar suas próprias vidas", disse Hyun.
Hyun, 61 anos, conhece melhor o funcionamento do regime do que a maioria dos desertores. Ela e o marido levaram vidas relativamente privilegiadas como acadêmicos. Hyun estudou filosofia na Universidade Kim Il Sung em Pyongyang e mais tarde ensinou a ideologia Juche - os princípios orientadores da dinastia Kim - em duas grandes universidades.]
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Tudo isso mudou quando o marido foi preso por supostos crimes contra o regime. Os dois filhos de Hyun, então adolescentes, fugiram do país depois de se esconderem por vários anos. Hyun seguiu o mesmo caminho em 2004. Ela agora está estudando para um doutorado em estudos norte-coreanos na Universidade Ewha Womans em Seul, onde ela também trabalha com grupos de reunificação. Seu marido, segundo ela ficou sabendo, morreu sob custódia do estado.
"Estou planejando voltar daqui a cinco anos. Outros desertores me dizem que esse prazo é irrealista e teremos que esperar pelo menos uma década, mesmo que o encontro [entre Trump e Kim] corra bem", disse ela. "Ainda assim, eu diria que a cúpula está me deixando um pouco esperançosa".
Enquanto isso, ela vem enfrentando um pouco da transformação social que sonha para o seu país por conta própria.
"Eu vejo desertores homens que não levantam um dedo para lavar a louça ou cozinhar. Então eu digo a eles para ajudarem", disse ela. "Eles me dizem: 'Dr. Hyun está ficando estranha ultimamente, falando sobre os direitos das mulheres e tal. Você é diferente'".