Os torcedores dedicados vão até os ringues de terra ao ar livre cercados por cabanas de capim e palmeiras. Tomam seus lugares nos bancos de madeira improvisados e, em meio a músicas e vibração, glorificam os lutadores de moraingy, a luta sem luvas tradicional e brutal de Madagascar.
As disputas são um emaranhado de punhos, cotovelos, joelhos e pés, pontuadas pelo baque dos socos violentos e pelo som dos corpos que caem no chão. Há troca de golpes por mais tempo do que parece possível resistir.
Chutes e socos são desferidos, absorvidos e revidados com igual ferocidade. Os lutadores, conhecidos como fagnorolahy, executam uma dança violenta até que um deles desista ou seja derrubado, ou até que o árbitro identifique um vencedor.
"Não sinto medo antes da luta. Se você sentir medo, já perdeu, mas não se deve subestimar o adversário", disse Rocky Ambanza, astro local das competições.
Poucos oponentes subestimam Rocky, 28 anos, cujo corpo compacto é marcado por cicatrizes e arranhões. Sua força, velocidade e técnica, combinadas com sua arrogância confiante e agressividade, fizeram dele o favorito do público durante uma recente disputa de moraingy (pronuncia-se mor-en-gui) em Sambava.
A cidade, na região de Sava, nordeste de Madagascar, é a capital mundial da produção de baunilha. O preço global crescente do produto impulsionou a economia local nos últimos anos, e a injeção de dinheiro acrescentou um componente comercial à forma secular de combate.
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Os vencedores das lutas de moraingy ganham dinheiro, além de prêmios que podem incluir aparelhos de som, televisores, motos e até mesmo carros.
O esporte tradicional também mudou de outra maneira: era normalmente praticado por rapazes solteiros, com idades entre 10 e 35 anos. Agora, as mulheres participam cada vez mais, tanto como combatentes quanto como agentes.
"Meu marido ama moraingy. Por isso, com o dinheiro que estamos ganhando com o comércio de baunilha, assinamos contratos mensais com lutadores e promovemos os eventos", disse Maria Hadjee, cujo negócio da família patrocina uma equipe de moraingy em Sambava, com meia dúzia de lutadores e um treinador.
A equipe percorre a região em uma minivan, chamando a atenção do público ao percorrer as ruas de terra das cidades que visitam, e anunciando o combate do dia seguinte em alto-falantes. Às vezes, os próprios lutadores organizam o local da luta.
O combate que se segue acaba evidenciando não só força e coragem, mas também caráter, especialmente em uma derrota.
As regras variam de região para região, mas a vitória só é possível com a observação de certas atitudes e princípios sociais importantes, de acordo com Ernest Ratsimbazafy, autor de "Martial Arts of the World:An Encyclopedia of History and Innovation" (Artes Marciais do Mundo: Uma Enciclopédia de História e Inovação).
"O primeiro deles é o autocontrole. O medo dos socos deve ser superado, a calma deve ser mantida, e sentimentos vingativos devem ser evitados", escreveu ele.
Em Madagascar, as pessoas muitas vezes preferem formas indiretas de confronto – por meio de provérbios ou da divulgação de rumores de bruxaria, por exemplo, disse Sarah Osterhoudt, professora de Antropologia da Universidade de Indiana.
"A harmonia é importante, e a ação coletiva é muito mais valorizada que a ação individual. Então, qualquer coisa que permita às pessoas confrontar algo de uma forma ritualizada suaviza esse confronto. A luta pode ser uma forma de fazer isso de modo previsível", disse Sarah.
Em uma luta recente em Sambava, as cordas foram presas em postes em torno do chão de terra em uma área vazia, com alto-falantes imponentes tocando músicas pop malgaxe em substituição aos tambores, que eram a trilha sonora das lutas de moraingy de épocas passadas. As torcedoras de shorts curtos e bustiês dançavam conforme a batida.
Cerca de dois mil espectadores, que pagaram US$ 1 cada, cruzaram um portão estreito e ocuparam seus assentos, ou se sentaram nos muros, nas árvores e nos edifícios próximos para conseguir uma boa visão. A multidão estava bem abastecida de álcool, e jovens enchiam a boca de khat, uma planta que dá um ligeiro barato ao ser mastigada.
Quando a arena fica lotada, os fagnorolahy entram no ringue e andam em torno dele, provocando os oponentes com olhares, punhos cerrados e gestos ameaçadores. Apesar dessa provocação teatral, a atmosfera entre os lutadores é de camaradagem, refletindo o papel do moraingy como uma tradição de união masculina.
Logo, chegou Rocky. Um companheiro de equipe amarrou um amuleto vermelho em torno de seu avantajado bíceps direito, e o técnico besuntou seu rosto machucado com vaselina antes que ele pulasse as cordas para enfrentar o adversário.
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Ao sinal do árbitro, os dois lutadores se aproximam e começam a atacar com socos. Rocky se abaixa, desvia-se de um gancho de direita e desfere um golpe devastador, chegando a levantar do chão o adversário, que cai atordoado. A multidão urra. Rocky levanta os punhos para o céu, olhos fechados.
Apesar das lutas violentas, os lutadores de moraingy costumam enfrentar três ou quatro adversários em uma tarde. Cada disputa consiste em um a três rounds, com duração de menos de um minuto cada.
O knockdown de Rocky foi um dos destaques do dia. Em sua volta da vitória, ele cumprimentou o técnico e dirigiu-se para o meio da multidão, onde os torcedores depositavam dinheiro em um saco plástico que ele segurava.
Os espectadores tiravam fotos e faziam vídeos com o celular, que seriam compartilhados nas redes sociais.
Tradição
Excetuando-se esses detalhes modernos, o moraingy permanece enraizado no passado como uma expressão corporal da sociedade malgaxe.
"É muito mais que uma luta. É nossa cultura e nossa tradição, nossa história", disse Aboudou Matchimoudini, o treinador do Boite Noir de Diego, um dos clubes mais competitivos de Madagascar.
Essa história remonta ao século 15. A tradição de lutas espalhou-se por todo o país e para outras ilhas da costa sudeste da África, incluindo as ilhas Comoro, Reunião, Seychelles e Maurício.
As lutas são ferozes, mas os rituais em torno do esporte incentivam o respeito mútuo. O vencedor abraça seu oponente, levantando-o momentaneamente do chão antes que o gesto seja correspondido. O vencedor é aplaudido, e o perdedor também.
Quando os lutadores de Maria Hadjee se reuniam para uma tarde de treino em um estádio de futebol local, três cabras pastavam a grama seca perto do meio-campo. Após o treino, todos pararam para uma refeição de arroz e sopa em um restaurante à beira da estrada.
Os fagnorolahy podem ganhar algumas centenas de dólares por mês, o que é suficiente para Rocky, que assistiu à sua primeira luta de moraingy aos 15 anos, e imediatamente começou a treinar.
"Luto há 10 anos, e ganho o suficiente para viver. Meu único problema neste momento é que quebrei uma costela."
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