Durante a noite, na periferia de Pequim, trabalhadores migrantes que mantêm a capital da China alimentada, limpa, varrida e com suprimentos, esperam com medo de que uma batida na porta possa arruinar suas esperanças de encontrar uma vida melhor.
Longe dos arranha-céus e dos monumentos do centro, esquadrões de polícia e inspetores de segurança vêm esvaziando os bairros mais afastados da cidade lotados de trabalhadores pobres vindos da China rural. Os que trabalham ou moram em prédios considerados perigosos ou ilegais são obrigados a desocupá-los, algumas vezes com poucas horas de aviso, antes que casas, lojas e até mesmo fábricas sejam demolidas.
Dezenas de milhares já foram expulsos na mais agressiva operação da cidade contra as vizinhanças de migrantes de que as pessoas podem se lembrar. Vários outros trabalhadores de fora estão se perguntando quando tempo poderão permanecer em suas casas e mesmo em Pequim.
A administração da cidade diz que eles estão sendo expulsos para sua própria segurança, depois de um incêndio fatal em um assentamento de migrantes. Mas vários dos chineses afirmam que o governo está usando o fogo como desculpa para afastá-los e diminuir as pressões sobre a cidade, cuja população já chegou além dos 20 milhões de pessoas.
"De repente, em uma noite, meu meio de subsistência foi destruído como se eu tivesse sido atacada por bandidos, mas isso foi feito pelo governo, enquanto eles diziam que se importam conosco", afirmou Zhang Guixin, de 38 anos, vinda da província central de Henan, que teve seu quiosque, onde vendia frutas e vegetais, demolido.
"Nunca vi nada parecido em oito anos de Pequim, nada", garantiu Zhang, parada ao lado do que restou de sua barraca na Vila Xinjian, um bairro de migrantes no sul de Pequim onde a limpeza até agora foi a mais intensa. "Pequim não nos quer. Vamos ter que voltar para nossas vilas."
‘Sociedade igualitária’
As expulsões contrastam radicalmente com a visão que o presidente da China, Xi Jinping, apresentou em outubro quando ganhou um segundo mandato como líder do Partido Comunista e prometeu construir uma próspera sociedade igualitária. A operação contra os assentamento deixou abruptamente os migrantes sem moradia no meio do inverno e se perguntando por que os líderes do partido, fundado para representar as massas trabalhadoras pobres, estão se voltando tão duramente contra eles.
"Xi Jinping é da nossa terra", disse Dang Hui-e, que migrou da província Shaanxi, no noroeste do país, onde Xi passou parte de sua juventude. Dang afirmou que foi obrigada a sair de seu apartamento em três dias apesar de estar cuidando de sua filha de nove meses.
"Esse país tem leis. A lei é estabelecida por você, você é o presidente. Então, qual o valor da lei que você estabeleceu?", perguntou ela.
Até recentemente, a Vila Xinjian estava repleta de trabalhadores migrantes e seus filhos. Agora, metade da região é um campo de escombros e detritos de prédios demolidos e a outra metade está quase vazia, a espera das equipes de demolição. Os habitantes que permaneceram empacotaram seus pertences em malas e caixas.
Nos prédios que desocuparam, tigelas ainda com macarrão instantâneo e brinquedos abandonados são testemunhas de vidas interrompidas subitamente.
"Foi tão rápido que é difícil acreditar que era minha casa", contou Wang Guowei, migrante de 20 e poucos anos de Henan que arrastava uma mala em uma rua repleta de lixo e escombros. Ele encontrou um novo quarto em Pequim com ajuda de seu empregador, um fabricante de peças de automóvel.
"Não tenho certeza de quanto tempo vou poder ficar. Ninguém mais sabe quanto tempo poderá ficar em lugar nenhum", afirmou.
Exclusão
Cenas parecidas estão acontecendo em dezenas de barros de migrantes por toda a cidade. Os trabalhadores dizem que sentiram que estavam sendo tratados como pestes em Pequim, que já os exclui de benefícios como educação, cuidados de saúde e habitação, fornecidos para os locais que possuem permissão de residência permanente.
O governo de Pequim disse que as expulsões se tornaram mais urgentes depois que um incêndio no apartamento de um trabalhador migrante na Vila Xinjian matou 19 pessoas, entre elas 17 de outras partes da China. Após o acidente, as autoridades rapidamente classificaram 25.395 zonas de risco por toda a cidade e disseram que queriam agir depressa para "prevenir mais uma tragédia". O secretário do partido na cidade, Cai Qi, ordenou uma campanha de limpeza de 40 dias para livrar Pequim da falta de segurança nos bairros dos migrantes.
"A partir de hoje, vamos demolir o que pode ser demolido, não espere até amanhã", afirmou Wang Xianyong, funcionário distrital do sul de Pequim, em um discurso para autoridades que acabou na internet. "Se for demolido hoje, você não vai ter uma boa noite de sono?"
No início, os líderes da cidade ignoraram as reclamações dos migrantes. Mas, à medida que as imagens de trabalhadores expulsos arrastando seus pertences pelas ruas nas noites geladas de inverno apareceram nas redes sociais, elas geraram uma revolta pública excepcionalmente forte. Mesmo alguns meios de comunicação estatais criticaram as demolições apressadas.
"São pessoas de carne e osso, os trabalhadores de base que mantêm Pequim, essa imensa cidade, funcionando normalmente, e merecem respeito e compreensão de todos nós", dizia um comentário no site do maior canal de televisão da China, o CCTV.
‘Grupo inferior’
Em artigos e petições, críticos da campanha acusam Pequim de se aproveitar do incêndio como uma desculpa para acelerar as expulsões que até agora falharam na intenção de diminuir o crescimento da cidade.
"Os corpos dos mortos ainda não estão frios, e mesmo assim algumas pessoas desta bela capital batem o chicote para expelir a -população inferior-", diz uma das petições.
As autoridades locais negaram ter chamado os trabalhadores de grupo "inferior" e sugeriram que os críticos estavam tentando criar disputas sociais.
Mas o governo da cidade também passou anos tentando diminuir a população de migrantes de baixa renda de Pequim, usando as demolições e inspeções de documentos de residência para forçá-los a ir embora. Eles alertam que Pequim está sobrecarregada por uma explosão na população, que cresceu de 10,9 milhões em 1990 para quase 22 milhões em 2016.
Entre os números do ano passado, 8,1 milhões eram de migrantes chineses – a maioria de trabalhadores domésticos, mas também de funcionários de empresas, alguns dos quais foram deslocados pelas recentes expulsões.
"Eles querem que o cavalo corra, mas não querem alimentá-lo com grãos", disse Zhang Yonghui, trabalhador de cerca de 30 anos de Shaanxi que se mudou para Pequim alguns meses atrás depois de não conseguir encontrar emprego em minas de carvão. "Eles vão se livrar de nós por um tempo, talvez um ano, mas depois, em silêncio, vão nos deixar voltar porque precisam de nossa força de trabalho."
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