Com a concentração de militares russos na fronteira com a Ucrânia, Kiev vem alertando a comunidade internacional desde o ano passado sobre a possibilidade uma nova invasão pelo governo de Vladimir Putin - nos moldes da anexação da Crimeia, em 2014, e dos movimentos separatistas apoiados por Moscou na região de Donbass, conflito iniciado no mesmo ano e ainda em andamento.
Após o chanceler ucraniano Dmytro Kuleba comentar em entrevista coletiva sobre os esforços de Kiev para que o Ocidente não permita a repetição da crise deflagrada há quase oito anos, o embaixador da Ucrânia no Brasil, Rostyslav Tronenko, detalhou, em entrevista à Gazeta do Povo, sobre a pressão militar russa, como Moscou tem se recusado a retomar os diálogos do Formato da Normandia, a ameaça representada pelo gasoduto Nord Stream 2, a resposta dos aliados ocidentais aos alertas de Kiev e a perspectiva de entrada do país na Otan, a aliança militar do Ocidente, e na União Europeia.
O chefe da inteligência militar ucraniana disse ao Military Times que a Rússia, que tem mais de 90 mil soldados na fronteira, está preparando uma nova invasão à Ucrânia, em janeiro. Segundo a CNN, os Estados Unidos planejam enviar consultores militares e equipamentos, incluindo armas, para ajudar o país. Como se enxerga essa possibilidade de invasão?
A Rússia, pelo oitavo ano seguido, procura oportunidades para desestabilizar a situação na Ucrânia, ocupando ilegalmente a República Autônoma da Crimeia e a cidade de Sebastopol, travando e alimentando a guerra em Donbass, deslocando tropas e equipamentos perto das nossas fronteiras. Com essa quantidade de equipamentos e tropas que a Rússia posicionou recentemente, não demorará muito para que ela comece a ofensiva, se o Kremlin decidir fazê-lo. Nossa tarefa atual é fazer todo o possível para evitá-lo, e também encarecer o preço da agressão para o governo russo.
Ao mesmo tempo, existe a prontidão dos parceiros da Ucrânia, em particular os Estados Unidos, em deter a Rússia e fortalecer a capacidade da Ucrânia de se defender.
Eu acho que o que está acontecendo agora é mais uma demonstração de que a Rússia pode ativar rapidamente as tropas e armas já acumuladas, e a liderança russa está considerando várias opções, incluindo as militares. Ainda é cedo para julgar qual será o cenário da Rússia, mas vale a pena nos prepararmos.
O Ministério da Defesa da Ucrânia afirmou que, paralelamente aos movimentos militares da Rússia nas regiões da fronteira, há também o aumento das atividades de propaganda russa, "com a preparação de informações falsas para desacreditar as forças armadas". Como essas atividades têm acontecido, e qual o objetivo delas, na sua avaliação?
A guerra híbrida começou muito antes do ano de 2014, quando a Rússia invadiu a Ucrânia. Essa guerra, além das tropas russas no território da Ucrânia sem insígnias, prevê ações agressivas em várias frentes: propaganda enganosa, crise energética, desestabilização política com atuação de oponentes à vacinação. É possível que em breve também vejamos tentativas de provocar uma crise migratória.
Desde 2014, a propaganda russa demoniza a Ucrânia para justificar a guerra contra nós, em primeiro lugar, para o seu próprio povo.
Mas ultimamente a propaganda na mídia russa aumentou e mudaram-se as mensagens principais. Agora, a Rússia está acusando a Ucrânia de preparar ações que ameaçam a estabilidade e a integridade territoriais russas. A opinião pública já está pronta, com antecedência, para culpar a Ucrânia no caso de uma possível agressão russa.
À medida que a Federação Russa desloca mais tropas às nossas fronteiras, com mais frequência se menciona a alta probabilidade de algum tipo de provocação da Ucrânia contra a Rússia. Esta "provocação" pode num certo cenário justificar a incursão de tropas russas no território da Ucrânia.
Na verdade, eu acho que estamos observando a preparação da mídia para um Сasus belli.
Não podemos saber o que exatamente será usado para este propósito. Mas historicamente já conhecemos vários exemplos que levaram à ocupação de países bálticos pelas tropas soviéticas ou de parte de Finlândia, em 1939.
A Ucrânia tem feito esforços para retomar o Formato da Normandia. Quais as perspectivas para uma volta das negociações nesse fórum?
O Formato da Normandia é um instrumento de diálogo entre as partes de conflito para a resolução pacífica dele. Mas a Rússia, que é uma parte principal do conflito, não tem intenção mínima de cooperar. Recentemente, o Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa enviou suas propostas à Alemanha, França e Ucrânia sobre sua visão do documento final de uma possível reunião de chanceleres dos quatro países no Formato da Normandia.
Este documento está escrito de tal forma que não deixa nenhuma dúvida que o ministro [russo das Relações Exteriores] Serguei Lavrov continua evitando este encontro.
Além disso, no dia 17 de novembro, o mesmo ministério publicou correspondência diplomática confidencial entre o chanceler russo e os ministros das Relações Exteriores da França e da Alemanha. A publicação de correspondência confidencial complica ainda mais o trabalho conjunto, mina a confiança nas ações da diplomacia russa e demonstra que a Rússia não está interessada no desenvolvimento do Formato da Normandia.
Ao mesmo tempo, os chanceleres dos três países concordaram que não darão à Rússia o luxo de destruir o Formato da Normandia. Eles continuam trabalhando para envolver o país no processo de negociação e esforços diplomáticos para resolver este conflito. A Ucrânia continuará o diálogo porque está interessada em paz e segurança.
Os Estados Unidos foram criticados por terem abandonado seus aliados na região quando da retirada do Afeganistão. A Ucrânia teme situação parecida na crise com a Rússia? Outros aliados têm se manifestado para ajudar o país nessa questão?
A diplomacia ucraniana fortalece a segurança do nosso Estado ao trabalhar em algumas áreas principais: mobilizar aliados, impor sanções, introduzir a pressão política e diplomática sobre o Estado agressor e garantir que o exército ucraniano receba armas modernas. Nesse sentido, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, realizou importante trabalho em Glasgow, onde manteve conversas com líderes mundiais, incluindo o presidente dos Estados Unidos, a chanceler da Alemanha e o secretário-geral da Otan.
A situação de segurança em Donbass foi uma prioridade para o presidente da Ucrânia em todas essas negociações. Ele mobilizou aliados para apoiar nosso Estado em face da agressão russa.
Devo mencionar que no dia 11 de novembro, o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, e o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, assinaram em Washington a renovada Carta de Parceria Estratégica entre os nossos países.
O novo acordo envia uma mensagem clara: o apoio dos Estados Unidos à Ucrânia continua.
A Ucrânia precisa desse apoio para desenvolver ainda mais sua capacidade de defesa e também de dissuadir a Rússia. A transferência de armas defensivas adicionais para a Ucrânia desmotivará a Rússia de novas ações agressivas.
A Ucrânia recebeu a garantia de que os EUA estão empenhados em apoiar ainda mais sua soberania e integridade territorial, caso a Rússia decida lançar uma nova agressão. A Rússia deve estar ciente de que vai pagar um alto preço.
Além disso, outros parceiros também se pronunciaram. A ministra de Relações Exteriores do Reino Unido, Elizabeth Trass, advertiu que a Rússia cometerá um "erro grave" se lançar uma ofensiva em grande escala contra a Ucrânia. A diplomata também observou que Londres está trabalhando em estreita colaboração com os seus aliados da Otan para apoiar a Ucrânia.
Em 17 de novembro, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson também afirmou que a liderança russa cometeria um grave erro se recorresse à força contra a Ucrânia.
O ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian, advertiu as autoridades russas de que "qualquer violação da fronteira com a Ucrânia e qualquer invasão" terá "consequências extremamente graves".
É importante que a Ucrânia e seus aliados coordenem estreitamente e tomem todas as medidas que possam ajudar a deter a Rússia e prevenir os piores cenários.
Ucrânia e Polônia declararam que a construção do Nord Stream 2 representa "uma ameaça política, militar e energética para a Ucrânia e a Europa Central". Em que sentido? A decisão do governo alemão de suspender o processo de certificação do Nord Stream 2 e as sanções americanas relacionadas ao gasoduto representam uma esperança contra essa ameaça?
O gasoduto Nord Stream 2 é um projeto completamente político que não tem nenhum significado econômico. A Ucrânia e seus parceiros insistem que o Nord Stream 2 deve ser subordinado ao espírito e à letra do Terceiro Pacote de Energia da União Europeia, apesar dos esforços de lobistas e advogados russos para criar uma exceção. Estamos trabalhando para garantir que a Rússia não transforme o Nord Stream 2 em uma arma.
O projeto do gasoduto não só mina a segurança energética da Ucrânia e da Europa, mas também divide aliados europeus e transatlânticos, e por isso a Ucrânia continua se opondo ao seu lançamento.
Os Estados Unidos, a Polônia, a Ucrânia e os países bálticos também estão se opondo ativamente ao projeto, temendo o aumento da influência da Rússia no mercado europeu de energia.
O Nord Stream 2 nunca foi um projeto econômico. Este é um projeto geopolítico com um único objetivo - contornar a Ucrânia, para remover um dos fatores que impedem a agressão russa.
Quero sublinhar que o sistema ucraniano de transporte de gás era e continua sendo a forma mais segura e confiável de transportar gás da Rússia para a UE.
Com o aumento da concentração militar russa na fronteira, a Ucrânia tem recebido apoio dos aliados da Otan individualmente e da aliança como um todo. Há alguma sinalização de maior apoio aos esforços da Ucrânia para se tornar membro da aliança?
A Ucrânia sempre esteve e continuará comprometida com a paz, a justiça e a segurança na Europa. Estamos prontos para trabalhar com a Otan para proteger esses princípios fundamentais.
O país segue as reformas com propósito de cumprir todos os critérios necessários para aderir à Otan e à UE. Essa prioridade da nossa política externa está fixada na nossa Constituição.
Ao mesmo tempo, alguns aliados da Otan ainda veem a Ucrânia pelo prisma de suas relações bilaterais com a Rússia. Se eles mudarem de abordagem, a situação também mudará significativamente a favor da Ucrânia. E estamos trabalhando nisso.
Como a Ucrânia vê a crise de migração na fronteira de Belarus com a Polônia? O país tem tomado medidas para conter um possível fluxo de migrantes?
A crise migratória, a escalada militar da Rússia ao longo da nossa fronteira e nos territórios temporariamente ocupados, o aumento dos níveis de propaganda russa nos países da União Europeia, as ações da Rússia para paralisar o Formato da Normandia e o processo de Minsk, tudo isso são elementos do mesmo jogo visando crescente pressão sobre a UE. Esta é a posição que a Ucrânia transmitiu aos seus parceiros, e eles concordam.
A Ucrânia iniciou uma operação especial para reforçar a proteção da sua fronteira com Belarus e prevenir uma crise de migração ilegal. Guardas de fronteira, a Guarda Nacional, a polícia, as Forças Armadas da Ucrânia e reservistas participam dessa operação especial. A ameaça de desviar o fluxo de migrantes da Belarus para a Ucrânia ainda permanece na fronteira.
É por isso que a principal tarefa da operação especial é impedir que os migrantes cruzem a fronteira ilegalmente e entrem no território da Ucrânia.
Para esse fim, a Ucrânia fortaleceu o patrulhamento de fronteira em possíveis áreas de invasão de grupos de migrantes ilegais. Aviação, drones e outros meios técnicos de vigilância serão usados para patrulhar e proteger a fronteira.
O regime de proteção de fronteira está sendo significativamente fortalecido. Postos de controle nas estações de ônibus e trens serão instalados nas estradas da fronteira com Belarus.
Os policiais patrulharão conjuntamente as aldeias fronteiriças. Sua tarefa é proteger a lei e a ordem nas comunidades e explicar à população local os riscos da migração ilegal.