A encíclica papal sobre preocupações ambientais, “Laudato si”, publicada nesta quinta-feira (18), pode ter sido recebida com certa surpresa e até um tom de ineditismo por conta do tema. Mas, no entanto, reforça uma posição consolidada da Igreja Católica acerca do assunto, de acordo com análise do sociólogo e antropólogo Felipe Dittrich Ferreira, membro do Movimento Católico Global pelo Clima – grupo criado no início do ano, com participação de leigos e religiosos, para ressaltar aspectos desta crise.
“Não está se formulando agora uma espécie de ‘ambientalismo católico’ ou uma versão verde da doutrina católica. Esses elementos relativos ao dever de protegermos a criação sempre estiveram presentes, mas agora estão sendo enfatizados e sistematizados”, destaca.
“O que mudou é a urgência do assunto. Se você analisar textos de João Paulo II, desde o início de seu pontificado fala-se de problema de camada de ozônio, de descarte de resíduos, da questão nuclear. É uma característica da dinâmica social que você dê atenção a determinados ensinamentos no momento em que você é mais afetado”, aponta.
O documento publicado pelo Vaticano (disponível na íntegra em português), escrito pelo papa Francisco, traz um alerta sobre a crise climática e cobra, sobretudo de países desenvolvidos, medidas para contê-la ou solucioná-la.
Muito embora não trate de temas inéditos para a Igreja, o texto é importante por documentar em encíclica a preocupação ecológica. “O papa é uma personalidade cativante. A partir do momento em que ele abraça um tema, acaba tendo um impacto na dinâmica da politica sobre este tema. Nos Estados Unidos, por exemplo, ainda existem setores que não acreditam no aquecimento global ou crises climáticas. E a encíclica foi um recado direto a estas pessoas”, diz Antônio Carlos Alves dos Santos, professor de Ética em Economia na PUC de São Paulo e especialista em Doutrina Social da Igreja.
Discussão ética e moral
Apesar do teor prático do texto, que cita claramente a necessidade de reduzir a emissão de poluentes e buscar por energias renováveis, por exemplo, Francisco não se apoia apenas em soluções técnicas e científicas. Boa parte do discurso sugere uma avaliação mais ampla: ética e moral. “Uma ciência, que pretenda oferecer soluções para os grandes problemas, deveria necessariamente ter em conta tudo o que o conhecimento gerou nas outras áreas do saber, incluindo a filosofia e a ética social”, destaca o papa Francisco no capítulo 110 (os capítulos são numerados no documento) .
“A igreja atribui às ciências e à técnica um papel importante na resolução dos problemas que enfrentamos. Mas as soluções plenamente eficazes temos que buscar no domínio da moral e da ética. Por isso se diz que vivemos uma crise moral. E por isso a solução não é meramente técnica. A solução é ética e moral com dimensão comportamental”, interpreta Ferreira. “Dificilmente só com técnica e ciência teremos uma solução para um mundo de vida em abundância para todos”, complementa.
“O argumento da Igreja quando se pronuncia sobre as questões sempre parte de um ponto de vista da ética e da moral. Neste caso em particular, Francisco, que é formado em Química, está habilitado a tocar no assunto [científico]. Esta relação de moral que ele coloca está clara quando cita os países desenvolvidos. Eles têm um modelo de consumo e um comportamento que Bento XVI [que exerceu o pontificado entre 2005 e 2013 e hoje é papa emérito] já havia chamado de ‘cultura do descarte’. É quando as pessoas são tratadas como mercadoria”, aponta Santos.
“O que ele basicamente diz é: ‘você tem que admitir que este aquecimento global causa perda de qualidade de vida para países pobres. Tem impacto na chuva, nas áreas alagadas, na falta de alimentos. Os pobres não têm outra alternativa. Se você quer ajudá-los, tem que ter uma preocupação com a questão ambiental’”, avalia o professor.
Impacto
Logo após a divulgação do texto, diversas entidades se manifestaram positivamente à preocupação da Igreja. Christiana Figueres, secretária-geral do Secretariado da Mudança Climática da ONU, disse que a encíclica representa um grande ímpeto para que os governos concordem com um pacto vigoroso quando se reunirem para a cúpula climática da ONU em Paris, no fim do ano. “Este clamor deveria guiar o mundo rumo a um acordo climático universal forte e duradouro em Paris no final do ano”, disse Christiana.
“É um texto para convencer os contrários à ideia de que exista uma crise climática. Mas também é para atingir os dirigentes de países ricos. Ele basicamente diz a quem o respeita e admira que comece a colocar em prática todas estas medidas”, diz o professor da PUCSP.
“Claro, a gente nunca pode perder a expectativa de que todos possam se converter e entender o seu papel. Fica a expectativa de quem pode fazer mais [líderes mundiais], faça mais. Mas se não houver disposição para isso, só nos resta recorrer a essa outra forma de atuação, de baixo para cima, com conscientização das populações, de forma que cada povo, cada população faça pressão sobre seu líderes, suas empresas”, diz Felipe Dittrich Ferreira.
“Não podemos ficar neste debate de convencimento apenas. É um trabalho de ação, quase de auto-organização de comunidades se articulando e agindo. Sem aguardar. Sem esperar que os poderosos tomem por nós uma decisão altruísta ou que até interfira em seus próprios interesses econômicos”, completa o sociólogo.