O primeiro-secretário do Partido dos Trabalhadores da República Popular Democrática da Coreia, Kim Jong-un, visitou Beijing nos dias 8 e 9 de janeiro de 2019 a convite do líder do Partido Comunista da China e presidente da República, Xi Jinping. Kim foi recebido com honras de chefe de estado, encontrou-se duas vezes com Xi, seguido de banquetes, assistiram juntos a um espetáculo cultural e visitou uma fábrica de medicamentos em um subúrbio da capital chinesa. Retornando em seguida, em seu trem secreto e protegido, à capital coreana do norte, Pyongyang, a visita foi considerada um grande sucesso no aprofundamento das relações bilaterais entre duas nações ideologicamente afinadas. Xi teria aceito o convite de retribuir a visita ainda este ano.
Desde março de 2018, esta foi a quarta vez que o líder coreano é recebido pelo líder chinês em Beijing. No entanto, foi a primeira vez que a visita foi oficialmente anunciada e amplamente reportada pela mídia chinesa. Esta recente e intensa agenda diplomática bilateral reflete uma transformação radical no padrão de relacionamento que vigorou durante os seis primeiros anos de liderança do jovem líder coreano, que teria completado 35 anos no dia 8 de janeiro. Entre dezembro de 2011, quando herdou de seu pai o trono da dinastia Kim e março de 2018, não houve nenhum encontro entre os dirigentes máximos de Beijing e Pyongyang.
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Herdeiro da dinastia comunista no poder desde 1948 – primeiro Kim Il-sung, seu avô e depois Kim Jong-il, seu pai – Kim Jong-un é o mais novo dentre três irmãos e foi uma escolha surpreendente para a liderança. O jovem líder, então com menos de trinta anos, sucedeu seu pai quando este faleceu subitamente e custou a se afirmar no poder, em um regime altamente centralizador e personalista, que cultua como uma figura quase sobre-humana os membros da dinastia Kim.
Entre o início de seu mandato e março de 2018, Kim Jong- un não se encontrou com Xi Jinping – que assumiu a liderança do PCC em março de 2013 – como também não teria se encontrado com nenhum chefe de estado ou de governo de um só país do mundo e nem teria feito nenhuma viagem fora de suas fronteiras. Isto refletiria o total isolamento do regime que controla, com mão de ferro, o destino de mais de vinte e cinco milhões de coreanos.
Com efeito, a Península Coreana, dividida entre as Coreias do Norte e do Sul, é o último resquício da Guerra Fria, o conflito político-militar-ideológico que pautou a ordem internacional entre 1945 e 1990. A Guerra da Coreia (1950-1953) foi determinante para o desenrolar da Guerra Fria e, até hoje, não foi concluída. Ainda vigora uma suspensão temporária do conflito – armistício é o termo técnico correto – e não um acordo definitivo de paz entre os contendores, as duas Coreias e seus principais aliados, os Estados Unidos, aliado da Coreia do Sul e a China, aliada da Coreia do Norte.
O que teria motivado o relançamento das relações bilaterais entre Beijing e Pyongyang em 2018 teria sido, em última análise, o desenrolar das relações conflituosas entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos a partir da chegada ao poder do presidente Donald Trump. Dando fim a política de seu antecessor Barack Obama – denominada de paciência estratégica – Donald Trump iniciou uma agressiva guerra verbal com o líder coreano do Norte em 2017, subindo em muito o tom de ameaça, inconformado com a nuclearização do regime coreano e os sucessivos testes nucleares e missilísticos incorridos a partir de 2015, que ameaçariam diretamente o território americano.
Após uma série de manobras diplomáticas, em que o novo líder da Coreia do Sul, Moon Jae-in, teve um papel central, Kim e Trump se reuniram em junho de 2018 em Cingapura. Sob o olhar atento da mídia internacional, foi a primeira vez que líderes dos Estados Unidos e da Coreia do Norte se encontraram tête-a-tête, visando negociar a desnuclearização militar da Península coreana e o fim definitivo do conflito coreano.
Desde os anos 1990, quando Pyongyang renunciou ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e embarcou em um programa de nuclearização, a Coreia do Norte desenvolveu, progressivamente, a capacidade nuclear bélica e seus vetores de lançamento, o que teria sido concluído a contento em 2016-17. Testes nucleares, mísseis de curto, médio e longo alcance, submarinos e jatos capazes de lançar ogivas nucleares fizeram com que a Coreia do Norte se tornasse o nono país do mundo reconhecido, formal ou informalmente, pela comunidade internacional como possuidor de armas nucleares.
Diante deste quadro de deterioração das relações e ameaça militar na Península coreana, o encontro entre Trump e Kim em Cingapura teria servido para desanuviar o ambiente hostil e dar início a um processo de negociação mas, ao que tudo indica, não se avançou muito em medidas concretas desde então. Assim, tudo indica que um segundo encontro entre os dois estaria sendo preparado para ter lugar ainda no primeiro semestre de 2019. Washington continuaria a exigir medidas concretas que levariam à desnuclearização da Península como condição prévia a flexibilização das draconianas sanções comerciais impostas a Pyongyang, enquanto Kim demandaria o abrandamento das sanções antes de tomar medidas efetivas pró-desnuclearização. O novo encontro procuraria resolver este impasse.
Seria no contexto de uma nova cúpula em preparação entre Trump e Kim que o quarto encontro recém concluído em Beijing teria se dado. Elevando a um outro patamar as relações bilaterais China-Coreia do Norte, o terceiro Kim voltaria a tornar Pyongyang um aliado próximo a Beijing. Com efeito, desta vez os encontros entre Kim e Xi foram efusivos como nunca haviam sido, solidificando, setenta anos após o estabelecimento de relações diplomáticas em 1949, as relações bilaterais e legitimando definitivamente a liderança de Kim Jong-un.
Apesar das afinidades ideológicas – Mao considerava as relações entre os dois como “lábios e dentes” – os setenta anos de relações entre Beijing e Pyongyang atravessaram períodos de altos e baixos. A partir da abertura econômica chinesa em fins dos anos setenta do século passado, Beijing procurou, como ainda procura, influenciar a dinastia Kim a seguir as reformas econômicas chinesas e a moderar suas ações e seu discurso, bem como a distanciar-se da obstinada procura coreana pela nuclearização a qualquer custo. Beijing ter concordado com a imposição a Pyongyang de um conjunto de sanções comerciais inéditas no âmbito do Conselho de Segurança da ONU, assim como restrições nas relações comerciais bilaterais foram, a meu ver, um dos principais fatores que teria levado Kim Jong-un a procurar o caminho da negociação.
Neste contexto, a retomada da aliança entre Beijing e Pyongyang motivada, em última instância, pela nova dinâmica que passou a prevalecer na Península Coreana seria resultado de um cálculo político em Beijing e uma resposta à relativa aproximação entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte.
Como bom calculista, Xi Jinping vem usando a diplomacia para afirmar a nova força internacional da China. Ao que tudo indica, China, Estados Unidos e as duas Coreias ainda teriam muito a negociar no intuito de superar definitivamente a Guerra Fria na Península coreana.
*Paulo Wrobel é professor no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio
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