Não é de hoje que o governo Trump e o FBI estão em pé de guerra, mas o conturbado relacionamento ganhou um novo capítulo na semana passada, com a divulgação de um memorando acusando a polícia federal norte-americana de abusar de seus poderes e tentar influenciar no resultado das eleições em 2016. Apelidado de “memorando Nunes”, em referência ao presidente do Comitê de Inteligência do Congresso dos EUA (o deputado republicano Devin Nunes), o documento de quatro páginas vem sendo minimizado pela oposição e pelo próprio FBI, mas a Casa Branca quer utilizá-lo como prova de que os americanos não podem acreditar na imparcialidade das investigações sobre o suposto envolvimento da campanha de Donald Trump com a Rússia.
O que é o memorando
Divulgado na sexta-feira passada (2), o documento foi elaborado após uma série de audiências e entrevistas levadas a cabo pelo Comitê de Inteligência do Congresso no ano passado, e basicamente trata de um episódio específico: no final de outubro de 2016, às vésperas das eleições, o FBI obteve autorização judicial para investigar e seguir Carter Page, um ex-assessor da campanha de Trump, com base na Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira (FISA, na sigla em inglês). De acordo com o memorando, membros do FBI teriam enganado o tribunal a fim de obter a autorização, utilizando informações apenas parciais para convencer a Justiça de que a vigilância sobre Page era necessária.
Page era visto como um dos elos do suposto conluio da campanha republicana com a Rússia e a vigilância sobre seus passos era parte da investigação mais ampla que ainda ocorre – e pode vir a implicar até mesmo o presidente Donald Trump. O memorando alega que, ao obter autorização para seguir Page, o FBI não revelou à Justiça que a principal fonte das informações a seu respeito – o investigador particular britânico Christopher Steele – teria interesses pessoais em impedir que Trump chegasse à presidência. Segundo o texto, Steele havia confidenciado a colegas estar “desesperado” com a perspectiva de uma vitória de Trump. Ainda de acordo com o memorando, a polícia federal também não disse ao tribunal que Steele havia obtido as informações ao realizar uma investigação sob contrato do Partido Democrata, o que configuraria conflito de interesses. O tribunal tampouco teria sido informado de que britânico já era considerado pela polícia uma fonte menos confiável do que no passado, pois vinha compartilhando os dados tanto com o FBI quanto com a imprensa.
A divulgação do memorando foi rejeitada pela minoria democrata do Comitê, alegando que o material poderia colocar em risco os informantes e investigadores envolvidos no caso, bem como revelar dados confidenciais das investigações em andamento, mas a oposição foi voto vencido. Na visão dos republicanos, as informações contidas no documento eram de interesse público e, embora mantidas em segredo até então, não ameaçavam a segurança de nenhum dos implicados. A opinião foi seguida por Donald Trump, que autorizou a divulgação das quatro páginas redigidas por Devin Nunes na íntegra. Caso a má intenção do FBI no caso venha a ser confirmada, não seria a primeira vez que a polícia federal americana tenta influenciar os rumos políticos do país (ver abaixo), embora casos do tipo tenham se tornado raros nas últimas décadas.
Quem são Christopher Steele e Carter Page?
Ex-oficial do serviço de inteligência britânico MI6 e agora atuante no setor privado de investigações, Christopher Steele é o principal nome por trás das acusações de que a campanha de Donald Trump entrou em conluio com a Rússia para derrotar Hillary Clinton, por meio da obtenção irregular de informações confidenciais contra a ex-Secretária de Estado dos EUA. Em 2016, Steele havia sido contratado pelo Partido Democrata para fazer o que que na política americana é conhecido como “pesquisa de oposição”, uma coleta de informações – comprometedoras ou não – do adversário nas eleições. Durante sua investigação, ele teria descoberto evidências de que assessores de Trump conspiraram com emissários russos para obter informações capazes de afetar a imagem de Clinton perante a opinião pública.
Steele hoje é conhecido por ter elaborado uma série de 17 informes sobre a suposta conspiração. Chamada de “dossiê Trump-Rússia”, essa coletânea foi distribuída à imprensa em janeiro do ano passado, pouco antes da cerimônia de posse do novo presidente. Mas, ainda em 2016, antes da publicação do material, Steele já havia compartilhado os dados levantados com o FBI, que passou a investigar o caso enquanto a campanha eleitoral ainda corria. As acusações de Steele foram levadas a sério pelo FBI devido à colaboração anterior do especialista britânico com a agência: ele havia sido um dos principais informantes na investigação internacional liderada pela polícia federal americana que devassou a FIFA, a entidade máxima do futebol, em maio de 2015.
Um dos implicados no suposto conluio da campanha de Trump era o assessor Carter Page, o que rendeu o pedido da polícia por uma vigilância mais aprofundada sobre ele – pedido este que constitui o foco do “memorando Nunes”. Page entrou na equipe do candidato republicano como um dos assessores para a elaboração da política externa durante a campanha, e se tornou figura de interesse dos investigadores após viajar para Moscou em julho de 2016. Em setembro daquele mesmo ano, o site Yahoo News noticiou que a viagem de Page incluiu uma reunião previamente mantida em segredo com oficiais do governo russo (segundo o memorando divulgado na semana passada, teria sido Steele quem vazou a informação ao site), o que levou ao seu afastamento voluntário da campanha de Trump. Em 21 de outubro, quase um mês depois de Page deixar de assessorar o futuro presidente, o FBI fez o pedido para iniciar a vigilância eletrônica sobre ele.
O timing do memorando
Levantada por Steele e investigada pelo FBI desde antes das eleições, a possibilidade de interferência russa nas eleições atualmente também é alvo de uma investigação federal independente conduzida pelo procurador especial Robert Mueller (ele próprio um ex-diretor do FBI, entre 2001 e 2013). O “memorando Nunes” vem como resposta ao dossiê de Steele, mas surge mais de um ano após a sua publicação, porque só agora as buscas de Mueller têm fechado o cerco sobre o círculo mais próximo de Donald Trump.
No último dia 16 de janeiro, Mueller intimou o ex-estrategista-chefe de Trump, Steve Bannon, a testemunhar no caso. Ainda não existe data para a conclusão dos trabalhos e nem se sabe a que direção se dirige o conteúdo do relatório final de Mueller, mas a expectativa de republicanos e democratas é que o procurador possa acabar intimando até mesmo o presidente e seus familiares a depor. Recentemente, o New York Times revelou que Trump teria tentado destituir Mueller ainda no início das suas investigações na metade do ano passado, mas voltou atrás após ser alertado sobre a repercussão negativa que a ação teria.
Para a oposição, o memorando divulgado na semana passada seria a tentativa republicana de barrar as investigações sem incorrer em medidas mais radicais contra o procurador. Alguns congressistas da base de Trump já se manifestaram no sentido de interromper as buscas por conluio, já que haveria conflito de interesse na elaboração do dossiê por Christopher Steele: “é preciso que haja uma discussão sobre se a investigação de Mueller é realmente necessária, visto que a principal premissa que lançou a investigação não é crível e foi dirigida e financiada por adversários políticos”, declarou o deputado republicano Jeff Duncan, no Twitter. Outro congressista do partido governista, Raul Labrador, tuitou: “o verdadeiro conluio foi entre membros do Partido Democrata e oficiais-chave do FBI e do Departamento de Justiça para espionar a campanha de Trump e interferir nas eleições”.
Os argumentos da oposição e do FBI
Para muitos democratas, a menção a Carter Page é uma clara mudança de posição dos republicanos em relação a um personagem que, na época das eleições, havia sido renegado. Quando Page saiu da equipe de Trump em função das suspeitas que sua viagem à Rússia havia gerado, o então porta-voz do futuro presidente, Jason Miller, apressou-se em garantir que ele “não era um assessor e não fez qualquer contribuição à campanha”. Agora, a vigilância sobre Page é utilizada pelo governo como evidência de que a campanha de Trump esteve na mira do FBI – mesmo que o pedido da polícia tenha ocorrido cerca de um mês depois de seu desligamento junto ao comitê republicano.
Contrários à divulgação inicial do memorando, os democratas agora querem que o presidente Donald Trump autorize a publicação da sua própria versão dos fatos, um memorando em “resposta” elaborado pelos membros da oposição que estiveram presentes nas reuniões do Comitê de Inteligência do Congresso. O documento democrata já vem sendo chamado de “memorando Schiff”, em referência ao deputado Adam Schiff, o equivalente a Devin Nunes no outro lado do espectro político. Para Schiff, é um “terrível precedente” o cenário em que “um partido publica um memorando enganoso e o outro partido precisa escrever uma correção”. No final de semana passado, o líder da minoria democrata no Senado, Chuck Schumer, fez um apelo ao presidente: “é uma questão de justiça fundamental que o povo americano possa ver os dois lados do argumento e fazer seu próprio julgamento”, declarou.
O ex-diretor do FBI James Comey, que havia iniciado as investigações e foi eventualmente destituído do cargo por Trump em maio do ano passado, procurou minimizar o memorando: “É só isso?”, tuitou após a divulgação do documento. “Um memorando desonesto e enganoso arruinou o Comitê de Inteligência da Câmara, destruiu a confiança entro da comunidade da inteligência, prejudicou a relação com a corte que julga os pedidos da lei FISA, e imperdoavelmente expôs informações confidenciais de uma investigação sobre um cidadão americano. E por quê? O Departamento de Justiça e o FBI devem continuar a fazer o seu trabalho”.
O que acontece agora?
Os legisladores aprovaram a divulgação do “memorando Schiff”, cujo conteúdo ainda é desconhecido, na última segunda-feira (5). Embora o Congresso tenha permitido que essa versão também venha a público, a decisão final está nas mãos de Donald Trump, que pode censurar trechos do documento alegando questões de segurança nacional ou até mesmo vetar inteiramente a distribuição do texto. Não está claro se o presidente permitirá a publicação do documento, nem se os deputados e senadores – nos dois casos, de maioria governista – teriam votos suficientes para reverter um eventual veto presidencial.
A investigação de Robert Mueller, até que haja ordem expressa da Casa Branca em contrário, prossegue. Em tese, Trump tem poder para destituir Mueller e também o procurador-geral Rod Rosenstein, que poderia perder o cargo em função da suposta conivência do Departamento de Justiça com as alegadas irregularidades da investigação do FBI. Ainda que boa parte dos republicanos tenha considerado o “memorando Nunes” suficiente para derrubar as investigações, a opinião não é unânime. “Eu não concordo com alguns dos meus colegas, sempre usando palavras como ‘explosivo’ para descrever o documento. Eu insisto: ‘Bob’ Mueller deve ser autorizado a não deixar pedra sobre pedra, perseguir todas as pistas para que possamos ter total conhecimento sobre o que os russos fizeram ou deixaram de fazer”, disse o deputado governista Will Hurd, do Texas.
No fim de janeiro, a decisão de Trump de não impor as sanções econômicas à Rússia aprovadas por esmagadora maioria no congresso (517 votos a 5) aumentou o descontentamento dos congressistas com o governo. Segundo Steele alegava em seu dossiê, a suspensão das sanções dos EUA teria sido justamente um dos pontos discutidos nas reuniões que a campanha de Trump supostamente teve com emissários do Kremlin.
Leia também: Quem são os personagens principais da trama que envolve Trump e o FBI
Histórico do FBI
Ao longo dos tempos, o FBI esteve envolvido em outras polêmicas sobre o abuso de seu poder para influenciar a política americana, especialmente nas suas décadas iniciais.
Arquivos sexuais de Hoover (1935-1972): primeiro diretor do FBI, entre 1935 e 1972, J. Edgar Hoover ganhou fama por chantagear políticos mantendo detalhados arquivos sobre suas vidas sexuais, ameaçando vazá-los caso fosse contrariado. Os “arquivos secretos”, como ficaram conhecidos em Washington, teriam sido usados para garantir a perpetuação de Hoover no cargo – depois dele, que ficou por quase 37 anos no comando do FBI, novas medidas de “neutralidade” foram impostas pelo governo e nenhum outro diretor permaneceu por mais que 9 anos.
Eleições de 1948: às vésperas do pleito presidencial de 1948, Hoover vazou para a oposição informações comprometedoras sobre as associações do então presidente Harry Truman com políticos corruptos do estado do Missouri. O motivo para prejudicar o mandatário seria o descontentamento do diretor do FBI com a criação da CIA um ano antes, o que tirou parte de seus poderes. Apesar da ajuda de Hoover, o republicano Thomas Dewey acabaria perdendo as eleições, mas o FBI seguiria atacando o governo Truman pelos próximos quatro anos – em 1952, finalmente, ele não conseguiria eleger um sucessor de seu partido, pondo fim a vinte anos consecutivos de governos do Partido Democrata.
Campanha contra Martin Luther King (anos 60): nos 50 anos desde o assassinato do líder do movimento pelos direitos civis, vários documentos confidenciais do FBI foram desclassificados, mostrando a existência de uma campanha sistemática para atacar publicamente a imagem de King, uma figura incômoda para o governo de Lyndon Johnson. A campanha também incluía vazar informações sobre supostas orgias com a participação de Marin Luther King, que era pastor evangélico, e até mesmo sobre a existência de um filho fora do casamento. Nenhuma das alegações foi confirmada até hoje.
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