No último domingo (7), o futebol profissional gerou uma cena digna de várzea: após tomar um gol logo com um minuto de jogo, o Fenerbahçe abandonou o gramado e seu adversário, o rival Galatasaray, comemorou o título da Supercopa da Turquia.
Conhecido no Brasil nas últimas décadas devido aos brasileiros que defenderam suas cores (o mais bem-sucedido foi o meia Alex, ex-Coritiba, Palmeiras, Flamengo e Cruzeiro), o Fenerbahçe já havia adotado como forma de protesto nessa partida a escalação do seu time sub-19, ao invés da equipe principal.
“A nossa rebelião hoje, a nossa postura na Supercopa, não é só pela data do jogo ou pelo que aconteceu no último jogo fora de casa. É hora de um ‘reset’ para o futebol turco. Estamos num período em que o pântano precisa ser drenado e o futebol turco precisa se reconstruir. Não há necessidade de reinventar a roda”, afirmou o presidente do clube, Ali Koç, em um comunicado.
O episódio a que Koç fez referência foi a invasão de torcedores do Trabzonspor após uma vitória do Fenerbahçe em jogo disputado no mês passado. Jogadores do Fener, como é conhecido, foram agredidos. Outros episódios de violência foram registrados no futebol turco na temporada 2023-2024.
O Trabzonspor foi condenado a mandar seis partidas com portões fechados, mas a pena depois foi reduzida para quatro jogos. Essa diminuição da punição e o fato de dois jogadores do Fenerbahçe terem sido suspensos por um jogo pela briga deram argumentos ao Fener na sua alegação de que é perseguido devido a pressões do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan.
A inoperância da polícia durante a briga no jogo contra o Trabzonspor e a suposta arbitragem tendenciosa (o clube pediu um árbitro estrangeiro na Supercopa, mas não foi atendido) reforçaram ainda mais esse discurso.
A insatisfação é tão grande que a diretoria do Fenerbahçe propôs aos sócios uma votação para que decidissem se o clube deveria deixar a liga turca, mas o debate foi adiado pelo menos até o fim da atual temporada.
O Fener se diz perseguido por Erdogan devido às suas ligações com o kemalismo, tendência política que é o oposto do defendido pelo atual líder turco, que está no poder como primeiro-ministro ou presidente há mais de 20 anos.
O kemalismo foi criado por Mustafá Kemal Atatürk, fundador da República da Turquia, em 1923. O movimento defende a separação entre religião e Estado e a aproximação com o Ocidente, enquanto Erdogan buscou nas últimas décadas misturar fé e política e se aproximar de outros países do Oriente Médio (além de perseguir a imprensa e opositores).
No seu site oficial, o Fenerbahçe tem uma seção dedicada a explicar o amor de Atatürk pelo clube (ironicamente, Erdogan também é torcedor do Fener).
Em março, o prefeito kemalista de Istambul, Ekrem Imamoglu, em campanha para a reeleição contra um candidato apoiado por Erdogan, visitou o clube e posou para fotos em frente a um busto de Atatürk.
“Espero que esta eleição seja auspiciosa tanto para o nosso país, como para Istambul e Kadiköy [distrito da maior cidade turca onde está localizado o estádio do Fenerbahçe]. Será uma celebração da democracia e uma eleição digna do nosso país. Os resultados eleitorais também serão auspiciosos”, disse Koç na ocasião.
Imamoglu, que também foi recebido por dirigentes dos outros dois gigantes do futebol turco, Besiktas e Galatasaray, foi reeleito.
Erdogan já havia entrado em atrito com seu time do coração em dezembro, quando a Supercopa, que seria realizada naquele mês na Arábia Saudita, foi cancelada e trazida de volta para a Turquia (em Sanliurfa, cidade onde ocorreu o “não-jogo” do último domingo) porque os jogadores de Galatasaray e Fenerbahçe foram impedidos de entrar em campo com camisas com imagens de Atatürk e uma faixa alusiva ao fundador da República da Turquia.
Erdogan declarou que o comportamento dos dois times fazia parte de uma manobra para “separar” a Turquia de “nações irmãs” por meio de “provocações e retórica maliciosa”.
Como Erdogan é Erdogan, não se trata de amor desinteressado – em março de 2023, o Fundo Saudita para o Desenvolvimento assinou um acordo para depositar US$ 5 bilhões no Banco Central da Turquia e ajudar a combalida economia turca. Quem vencerá a queda de braço entre o esporte mais amado do mundo e o autocrata da Turquia?