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o legado de Bento XVI

A defesa da vida acima de conveniências políticas

No fim de outubro de 2010, as pesquisas de opinião indicavam a vitória da petista Dilma Rousseff no segundo turno da eleição presidencial contra José Serra (PSDB), apesar de vários bispos católicos denunciarem que tanto Dilma quanto o Partido dos Trabalhadores estavam empenhados em liberar o aborto no Brasil. Foi quando, três dias antes da votação decisiva, Bento XVI entrou em cena. Os bispos do Maranhão, em sua visita obrigatória ao papa, feita a cada cinco anos, ouviram dele a cobrança de que os bispos se posicionassem de forma contundente sempre que a defesa da vida estivesse em jogo.

"Ficamos surpresos. Em geral, a mensagem do papa nessas visitas é um comentário aos relatórios que enviamos a Roma. Que eu saiba, nenhum de nós tinha mencionado a questão do aborto", conta dom José Belisário da Silva, arcebispo de São Luís (MA), que estava presente na ocasião. O discurso foi a manchete da Gazeta do Povo de 28 de outubro de 2010; o jornal havia tido acesso ao texto com exclusividade, na véspera da audiência papal.

Interferência

Em momento algum o papa falou de eleições ou dos candidatos. "Bento XVI nos lembrou de nossas responsabilidades como bispos. Não creio que ele tivesse qualquer intenção de interferir na eleição, até porque o discurso foi feito quase em cima do segundo turno, então não haveria tempo de uma repercussão que pudesse mudar algo", avalia dom João Carlos Petrini, bispo de Camaçari (BA) e presidente da Comissão Para a Vida e Família da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Embora Serra também tivesse histórico de apoio ao aborto – quando ministro da Saúde, em 1998, ele publicou uma norma técnica sobre a realização de abortos no SUS, em caso de estupro –, as atenções se voltaram à campanha de Dilma, já que o PT tem a legalização da prática como plataforma partidária.

A campanha de Dilma pas­­sou a concentrar esforços na desconstrução da imagem de "candidata pró-aborto", apesar de declarações feitas quando ela ainda não era candidata. A estratégia ajudou Dilma a vencer a eleição – e a presidente nomeou, para a Secretaria de Políticas para as Mulheres, uma militante pró-aborto, Eleonora Menicucci.

Nomes aos bois

Dom Petrini avalia que o discurso de Bento XVI dá respaldo aos bispos que desejarem orientar seus fiéis de forma mais direta, dizendo explicitamente que certo candidato ou partido que defenda o aborto não merece o voto do católico. "Não será a postura da CNBB, porque não é do nosso perfil como instituição. Mas, se um bispo achar necessário chegar a esse ponto, ele tem autonomia para tanto", afirma. Dom Belisário já não encara a situação dessa maneira. "A posição da Igreja sobre o tema é de conhecimento público. Não vale a pena partidarizar, a não ser em questões muito extremas, como foi por exemplo o nazismo, ao qual o bispo Clemens von Galen se opôs abertamente", afirma. Ambos concordam, no entanto, que a defesa da vida não pode servir para camuflar outros interesses partidários.

Mesmo com um perfil mais conciliador, a CNBB vem seguindo a orientação do papa, diz o bispo de Camaçari. A entidade manifestou sua oposição ao Código Penal proposto pelo Senado, que na prática legaliza o aborto até o terceiro mês de gestação. "Temos um grupo acompanhando projetos de lei e outras iniciativas no campo da defesa da vida e da família. Apostamos no entendimento, mas sabemos que há valores inegociáveis", afirma dom Petrini.

Eleição colocou bispos em lados opostos

A possibilidade da eleição de Dilma e da permanência do PT no Planalto causou polarização no episcopado ao longo de 2010. Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, então bispo de Guarulhos (SP), e dom Aldo Pagotto, arcebispo da Paraíba, assumiram a linha de frente na denúncia contra a plataforma petista de legalização do aborto. Aliado histórico do PT, o bispo de Jales (SP), dom Demétrio Valentini, acusava dom Luiz de crime eleitoral.

Em agosto de 2010, a Co­­missão em Defesa da Vida da Regional Sul 1 da CNBB (que compreende as dioceses paulistas) lançou um panfleto chamado Apelo aos brasileiros e brasileiras, em que enumerava diversos esforços do PT na direção da legalização do aborto no Brasil e pedia aos católicos "que, nas próximas eleições, deem seu voto somente a candidatos ou candidatas e partidos contrários à descriminalizacão do aborto". O documento levava a assinatura de três bispos: dom Nelson Westrupp, presidente da comissão; dom Benedito Beni dos Santos, vice-presidente; e dom Airton José dos Santos, secretário-geral. Pressionados, os bispos retiraram o Apelo do site da regional em outubro.

Também em outubro, dom Demétrio, dom Tomás Balduíno (presidente honorário da Comissão Pastoral da Terra), dom Pedro Casaldáliga (prelado emérito de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso) e outros quatro bispos e diversos religiosos assinaram um manifesto em favor de Dilma. Entre os signatários estavam dois bispos maranhenses, dom Xavier Gilles e dom Sebastião Lima Duarte. O primeiro estava entre os 15 prelados que ouviram o discurso de outubro da boca do próprio papa.

Dom João Carlos Petrini, bispo de Camaçari (BA), acredita que o tema deve retornar à pauta em 2014, e que o episcopado se mostrará combativo. "O PT foi criado e chegou ao poder com apoio de setores da Igreja, que depois se sentiram traídos quando, no segundo mandato de Lula, grupos mais ligados a reivindicações individualistas ganharam espaço, e com isso vieram temas como a defesa do aborto", descreve. "Se não mudarem as propostas, a tendência será de ânimos acirrados, com pequenas explosões aqui e ali", acrescenta.

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