Diga as palavras "papa brasileiro" em Roma e muitos vão assumir que você está falando sobre a candidatura do cardeal Odilo Pedro Scherer, de São Paulo, recentemente apontado pela mídia italiana como parte de um pacote que está sendo apoiado pela velha guarda do Vaticano, e que incluiria um deles à frente da Secretaria de Estado. Alguns observadores tomam esses relatos a sério, enquanto outros acreditam que são calculados para arruinar as chances de Scherer, ligando-o ao que Sandro Magister descreve como "os senhores feudais da Cúria".
Em qualquer caso, Scherer não é o único brasileiro em compasso de espera. Há outro concorrente do país com o maior número absoluto de católicos no mundo, cujas raízes humildes e a perspectiva pastoral podem torná-lo uma escolha atraente: o cardeal João Bráz de Aviz, 65 anos, em geral tratado simplesmente por "dom João".
A política do conclave de 2013 pode deixar uma porta aberta para um candidato que reúna duas facções que parecem, à primeira vista, aliadas improváveis. Ratzingerianos fiéis estão furiosos com o baixo desempenho das autoridades do Vaticano -- que em sua visão deixaram Bento XVI vulnerável demais a críticas e aceleraram sua decisão de renunciar -- e buscam dar uma chacoalhada na situação. Moderados, por sua vez, gostariam de um papa um pouco mais próximo do centro em questões ideológicas e teológicas. Ambas as correntes podem ter em Bráz um ponto de intersecção.
Nascido na cidade catarinense de Mafra, em 1947, Bráz de Aviz servia a Santa Sé desde janeiro de 2011 como prefeito da Congregação para os Institutos da Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, mais conhecida como a "Congregação para os Religiosos". Com a renúncia de Bento XVI, teve de entregar o cargo, como todos os demais chefes de dicastérios romanos.
Bráz vem de uma família pobre, com sete irmãos, um deles com síndrome de Down. Seu pai era açougueiro em um lugarejo tão afastado da vida urbana que, quando uma criança nascia, era preciso percorrer 40 quilômetros de carroça para batizar o bebê. Com a tenra idade de 11 anos, Bráz ingressou, em 1958, no seminário menor mantido por sacerdotes do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras. Aos 16 anos, começou a amizade de toda uma vida com o movimento Focolare, palavra italiana que significa "facho de luz". É um movimento católico criado pela leiga italiana Chiara Lubich durante a Segunda Guerra Mundial para promover a unidade e a irmandade universais e que atualmente conta com cerca de 100 mil integrantes em 182 países.
Bráz foi apresentado aos focolares por acaso, em um encontro com um pintor cubista. À época, conta o religioso, ele estava muito atraído pela Teologia da Libertação e sua opção pelos mais pobres, mas também preocupado pelo modo como ela parecia direcionar parte do clero para o radicalismo ideológico. O movimento Focolare, afirma, o ajudou a manter "o exato equilíbrio". "Ensinaram-me que eu sempre precisaria tentar entender o caminho que a outra pessoa segue, como vê as coias, e aprender com isso", declarou Bráz em 2011 em entrevista ao National Catholic Reporter. "É muito importante encontrar o bem no que as pessoas pensam e sentem em vez de condenar ou destruir. Para mim, não há outro caminho."
Com certeza ninguém pode acusar Bráz de ter vivido sob uma redoma, à margem do sofrimento das pessoas comuns no mundo em desenvolvimento. Quando era ainda um jovem padre, Bráz certa vez se deparou com um roubo a mão armada enquanto estava a caminho de uma paróquia para celebrar a missa. Foi baleado durante a troca de tiros e as balas perfuraram-lhe os pulmões, o intestino e um dos olhos. Embora tenha sobrevivido e os médicos tenham conseguido recuperar sua visão, ele ainda carrega fragmentos dos projéteis no corpo.
Nomeado bispo auxiliar de Vitória, em 1994, aos 47 anos, Bráz de Aviz chegou aos postos de bispo de Ponta Grossa, em 1998; de arcebispo de Maringá, em 2002; e, finalmente, de arcebispo de Brasília dois anos mais tarde, em 2004. Apesar da ascensão relativamente rápida, Bráz de Aviz geralmente mantém-se longe dos holofotes. Quando as notícias de que seria feito cardeal surgiram, em janeiro de 2011, o jornal O Estado de S. Paulo o descreveu como "discreto e pouco conhecido". Ainda assim, ele dá demonstrações de coragem. Em 2006, Bráz reprovou publicamente políticos que tinham concedido aumentos salariais a si mesmos, perguntando como poderiam defender um salário de mais de R$ 800 por dia enquanto a maior parte do povo que representam vive com R$ 12 por dia.
As fontes da Igreja no Brasil classificam-no como centrista, não exatamente como um teólogo da libertação, mas também longe do ramo mais tradicional da Igreja. Um jornalista brasileiro que cobre a Igreja disse ao NCR que, durante sua permanência em Brasília, Bráz de Aviz foi visto pelos admiradores do rito tridentino como um "inimigo". Ele também mantém certa distância dos chamados progressistas. Em dezembro de 2008, ele anunciou que boicotaria um encontro de franciscanos se Leonardo Boff o conhecido teólogo da libertação que abandonou a ordem e o sacerdócio em 1992 estivesse no mesmo evento. Dizem que o problema de Bráz com Boff não é a defesa dos pobres, mas sua batalha pela democratização da Igreja, à revelia da hierarquia.
Durante o breve período no Vaticano, Bráz construiu uma reputação como reconciliador, inclusive com uma ainda delicada aproximação com religiosas dos Estados Unidos. Seus esforços começaram mesmo antes da partida para Roma, com uma entrevista para o NCR no dia em que sua indicação foi anunciada. "Quero aprender e caminhar com elas", disse sobre as freiras. "É preciso ver as pessoas de perto, conhecê-las, o que as fará se aproximar, qualquer que seja o problema." Essa postura não caiu bem para os críticos, para quem Bráz e seu antecessor, o arcebispo norte-americano Joseph Tobin, enviaram sinais confusos com respeito à insistência quanto à ortodoxia e à obediência.
Bráz também usou atenuantes para falar sobre os Legionários de Cristo, ordem fundada pelo padre mexicano Marcial Maciel Degollado, depois sabidamente envolvido em casos de má conduta e abusos sexuais. "O que é mais preocupante é que os Legionários não sabem o que está ocorrendo em sua própria congregação", disse Bráz em 2012. Uma disciplina mais severa, afirmou, é, em parte, um meio de chamar a atenção para o fato de que muitos deles têm poder demais, "às vezes em questões de cuja autoridade a Igreja jamais abriu mão, como a direção espiritual e a confissão".
Na importante questão do abuso por parte do clero, Bráz sempre demonstrou grande compaixão pelas vítimas: "Temos de nos preocupar com a santidade da Igreja, mas também devemos estar muito próximos daqueles que foram atingidos, das vítimas", declarou em 2011. Na entrevista publicada pela imprensa brasileira no dia seguinte ao anúncio da renúncia de Bento XVI, Bráz afirmou que os tempos demandam uma Igreja com "grande capacidade de ouvir" (a propósito, ele também fez questão de indicar que este tempo pode não ser apropriado para um papa egresso do mundo em desenvolvimento).
Bráz de Aviz é o quarto brasileiro a chefiar um departamento do Vaticano. Antes dele, o cardeal Agnelo Rossi conduziu a Congregação para a Evangelização dos Povos, de 1970 a 1984, e depois o Patrimônio Apostólico da Santa Sé. Rossi também foi, por algum tempo, o decano do Colégio Cardinalício. Também precederam dom Bráz na chefia de departamentos o cardeal Lucas Moreira Neves, que comandou a Congregação dos Bispos de 1998 a 2000; e o cardeal Claudio Hummes, prefeito da Congregação para o Clero de 2006 a 2010. Cada um desses brasileiros foi, em algum momento, considerado como sério candidato ao pontificado, embora, obviamente, nenhum tenha sido eleito.
Há quatro grandes razões a explicar por que Bráz pode romper o bloqueio.
Primeiro, ele tem dois anos de temporada no Vaticano, mas não é associado à elite dominante. O pessoal interno sabe, por exemplo, que Bráz pediu para manter Tobin como o segundo em comando em seu gabinete, um esforço que se mostrou inútil em outubro de 2012, quando Tobin foi nomeado arcebispo de Indianapolis. Alguns cardeais podem ver o catarinense como uma boa aposta para arejar o Vaticano alguém que conhece o sistema por dentro, mas que também sabe como é se sentir pressionado por ele.
Em segundo lugar, sua eleição poria um rosto em dois terços da população católica que vive fora da Europa. Sua eleição também sacudiria a Igreja no Brasil, que enfrenta a migração de fiéis para seitas pentecostais e movimentos evangélicos, além do crescimento da indiferença à religião.
O terceiro ponto a favor de Bráz é que os cardeais convencidos de que o próximo papa precisa ser um efetivo evangelizador podem vê-lo como um catalisador para a fé uma figura acolhedora, fraternal, com a capacidade de reconciliar diversas correntes da Igreja e em contato com o mundo exterior.
Em quarto lugar, os cardeais mais engajados na tradição da justiça social veriam Bráz como um forte líder para essa causa.
Há, igualmente, razões que dificultam a ascensão de Bráz.
A primeira delas é sua figura gentil e cheia de compaixão, que o torna atraente, mas pode levantar dúvidas sobre sua real capacidade para enfrentar a burocracia vaticana.
Em segundo lugar, ele pode ser visto pelos cardeais que acreditam que o próximo papa terá de dar ênfase à identidade católica neste pontificado precedido por João Paulo II e Bento XVI como alguém centrista demais, voltado mais para o diálogo que para os decretos.
Terceiro: Bráz pode ter dificuldade de atrair votos de norte-americanos. No auge da crise entre o Vaticano e as irmãs norte-americanas, o cardeal William Levada, dos Estados Unidos, era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. É bem conhecido o fato de que Levada e o grupo de Bráz e Tobin não pensam exatamente da mesma maneira. Em uma entrevista concedida em junho de 2012 ao NCR, a última antes de deixar o posto no Vaticano, Levada aludiu a essa tensão dizendo que "ela cria a percepção de que a Santa Sé não está unida em sua missão". Levada continua prestigiado, especialmente entre os norte-americanos, que detêm somente 11 dos 115 votos, mas cuja influência vai além desses números.
O quarto desafio é que Bráz não manteve um perfil popular desde sua chegada a Roma e não é maciçamente conhecido pelos cardeais de outras partes do mundo. É um senhor obstáculo em um conclave no qual, por variadas razões, poucos cardeais estariam inclinados a deixar os dados rolarem em rumo desconhecido.
Dizem que esse filho de açougueiro que carrega consigo marcas da dificuldade e do perigo pode, apesar de tudo, ser um atraente candidato de coalizão um insider que também é outsider, um homem que ouve e que tem uma sedutora história pessoal a ser contada para o mundo.
Tradução: Maria Sandra Gonçalves
* John Allen Jr. é um dos mais experientes vaticanistas da atualidade. Jornalista do site norte-americano National Catholic Reporter (http://ncronline.org/), ele também colabora com o canal de televisão CNN e com a National Public Radio norte-americana. Allen é autor de vários livros sobre a Igreja Católica, incluindo duas biografias de Bento XVI, uma delas escrita quando Joseph Ratzinger ainda era cardeal. Duas de suas obras foram traduzidas para o português: Opus Dei, mitos e realidade, de 2005, e Conclave, de 2002, em que ele descreve os rituais que envolvem a sucessão do papa e apontava vários favoritos para assumir o posto após a morte de João Paulo II.