Para restaurar a sacralidade da missa, desfigurada por invenções locais alheias ao senso litúrgico da Igreja, Bento XVI resolveu, em 2007, liberar a celebração da missa tridentina, que era a norma na Igreja até 1969. Essa é a avaliação de um dos principais blogueiros de liturgia do mundo, o padre John Zuhlsdorf. Ele discorda da avaliação de muitos especialistas, para os quais a liberação da missa tridentina seria meramente um gesto de boa vontade para buscar o fim do cisma dos tradicionalistas da Sociedade São Pio X. Zuhlsdorf, que mantém o blog What does the prayer really say? (www.wdtprs.com), concedeu entrevista por e-mail à Gazeta do Povo.
Qual o papel da liturgia para Bento XVI?
O culto a Deus pela liturgia sempre foi central em seu pensamento. Ele escreveu muito sobre o tema. Ratzinger liga a crise da Igreja à crise da liturgia. Como elas se relacionam?
Deus está no topo da hierarquia dos nossos afetos. Se nossa relação com Deus está distorcida, defeituosa ou inadequada, todos os nossos relacionamentos serão distorcidos, defeituosos ou inadequados. Se nosso culto a Deus não é adequado ou agradável a Ele, enfraquecemos todos os outros aspectos de nossa vida. Nenhuma esfera da vida da Igreja pode estar bem se o culto litúrgico da Igreja não estiver saudável. Isso significa que precisamos rezar e adorar a Deus, como Igreja, da maneira como a própria Igreja determina que devemos fazê-lo. E precisamos manter uma continuidade com a forma como a Igreja sempre rezou. Essa continuidade é quebrada quando decidimos fazer as coisas de acordo com nossos próprios critérios, alterando incorretamente o modo de adorar e rezar. Assim fazemos mal a nós e a todos, porque estamos nisso juntos. Quais as principais contribuições de Bento XVI para a liturgia?
Sua principal contribuição para o Novus Ordo (a missa celebrada atualmente) é, acima de tudo, a permissão para a celebração da missa tridentina na forma antiga, com o "motu proprio" Summorum pontificum. Parece paradoxal, mas não é. A celebração da forma mais tradicional lado a lado com o Novus Ordo cria uma atração gravitacional sobre como a forma nova é celebrada, no sentido de haver maior solenidade. O uso da missa tradicional, que está crescendo, ajudará a "curar" o culto e direcioná-lo para a continuidade com a herança católica e com o modo como a Igreja quer que celebremos.
A missa tridentina ganhou força com Bento XVI, mas ainda está disponível para uma minoria bem restrita. Ela permanecerá assim?
Pequenas minorias podem fazer coisas grandiosas. Além disso, o número de pessoas que frequentam a missa tradicional cresce lentamente, mas de forma consistente. Pelo menos nos Estados Unidos, jovens padres e seminaristas vêm se interessando pela missa tridentina. À medida que eles vão assumindo paróquias, veremos um aumento no interesse por parte dos fiéis também.
Bento XVI também usou as missas papais para mandar mensagens sobre a maneira como ele quer ver a missa ser celebrada...
Sim, é importante a ação humilde, mas clara, do papa. Ele ensina pelo exemplo e pelo convite, em vez da imposição. Ele vem tentando trazer a Igreja de volta ao culto ad orientem (voltado para o oriente), e por isso pede que os altares tenham o crucifixo no centro, mesmo quando o padre está de frente para os fiéis. É um arranjo provisório na direção de colocar padre e fiéis juntos, voltados para a mesma direção, para o crucifixo, para o "oriente litúrgico". Esta é a melhor forma de expressar nossa esperança e anseio pelo Senhor. O papa também vem promovendo a comunhão de joelhos e diretamente na boca, que é a forma adequada de nos aproximarmos do Senhor Eucarístico. Esses são os exemplos mais importantes.
Qual o papel do monsenhor Guido Marini, mestre de cerimônias pontifícias, nesse processo?
O monsenhor Marini entende muito bem a visão que o Santo Padre tem do culto litúrgico, e trabalhou para implementá-la. Ele tem feito um ótimo trabalho e espero que o próximo papa o mantenha no cargo.
Por que demora tanto para as mudanças e sugestões do papa serem aceitas nas dioceses e paróquias?
Porque é muito mais fácil demolir um prédio que construí-lo. Mas a geração dos que foram animados pelo chamado "espírito do Vaticano II", oposto aos seus documentos, está passando. Uma nova geração está assumindo posições de liderança e não tem a bagagem desse entendimento torto do Concílio, o que Bento XVI chamou de "hermenêutica da ruptura". A nova geração quer a continuidade e está bem aberta ao que o papa vem fazendo.
ArtigoO legado litúrgico do papa Bento
Tracey Rowland, pesquisadora do Instituto João Paulo II para o Matrimônio e a Família, em Melbourne (Austrália), e autora de Ratzinger's Faith
Um dos momentos mais dramáticos do pontificado de Bento XVI foi a divulgação do motu proprio Summorum pontificum, em 7 de julho de 2007, que eliminou as barreiras ao uso do missal de João XXIII, conhecido popularmente como rito tridentino.
Em seus escritos anteriores ao pontificado, Bento observou que os que preferiam o missal de João XXIII ao de Paulo VI vinham sendo tratados como párias, e que isso não era justo. Não havia nada teologicamente defeituoso no rito antigo. O missal de Paulo VI foi promulgado para ir ao encontro das necessidades pastorais do "homem moderno", mas uma parcela significativa de católicos em todo o mundo ainda preferia a maior solenidade do rito antigo à maneira "caseira" como o rito novo era frequentemente celebrado. Bento se compadeceu desse grupo.
Em seu livro Introdução ao Espírito da Liturgia, Bento criticou a tendência de muitos padres a interpretar mal o rito novo, como se fosse um chamado à idiotização da liturgia. Ele comparou esse processo à adoração ao bezerro de ouro por parte dos hebreus no Antigo Testamento, e afirmou que a noção de que Deus deveria ser rebaixado ao nível do povo era nada menos que apostasia.
Ao levantar as sanções ao rito antigo, o papa disse esperar que os dois ritos fossem "enriquecer-se mutuamente". Para ele, a possibilidade de ter as leituras nas línguas nacionais, trazida pelo rito novo, é um desenvolvimento positivo, mas Bento também defende que o Gloria, o Credo, o Sanctus e o Agnus Dei latinos, bem como o Kyrie grego, devem ser parte do capital cultural de todo católico, independentemente de nacionalidade.
A busca por um único rito romano legítimo foi um desenvolvimento ocorrido após a Reforma protestante. Depois do Concílio de Trento, alguns ritos pré-tridentinos sobreviveram, como o carmelita e o dominicano. Ratzinger vê como legítima essa pluralidade. Seu princípio básico é o de que não há nada errado com a pluralidade de ritos, desde que cada rito possa ser ligado a um rito com origem apostólica. O que ele criticou enfaticamente é a ideia de que um comitê de especialistas ou uma equipe litúrgica de paróquia possam criar seu próprio rito.
Bento também combateu a tendência de muitos liturgistas pós-conciliares de rebaixar o caráter de sacrifício da missa e priorizar a noção de uma refeição em comum. Isso era um movimento na direção de uma teologia sacramental protestante, e Ratzinger se colocou contra isso. Sua exortação apostólica Sacramentum caritatis lançou várias críticas contra práticas e ideias que separavam a Última Ceia do sacrifício do Calvário. Ele também insistiu que tudo que fosse relativo à Eucaristia fosse marcado pela beleza.
Bento será lembrado como um grande defensor da solenidade na liturgia, e um papa para quem os católicos não deviam ser ignorantes.