O diálogo entre fé e razão nas viagens apostólicas

Embora o tema do relativismo tenha se destacado, estudiosos do pensamento de Bento XVI afirmam que o assunto está inserido em uma preocupação ainda mais ampla do pontífice: o diálogo entre fé e razão. "Para cada citação da ‘ditadura do relativismo’ foram feitas cerca de 80 referências ao tema da razão", observa Francisco Borba, coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da PUC-SP.

Nas 26 viagens internacionais que o papa fez, foram frequentes os encontros com representantes da intelectualidade, como o que ocorreu na Alemanha, em 2006, com estudantes e docentes da Universidade de Ratisbona, onde foi professor. Em 2009, na França, o papa falou a representantes do mundo cultural, em Paris. Na ocasião, Bento XVI criticou tanto o "fanatismo fundamentalista" quanto o "arbítrio do relativismo", e fez um apelo pela racionalidade na correta compreensão da Bíblia e do conceito de liberdade. Encontros semelhantes ocorreram na Re­­pública Tcheca, em 2009, e na Espanha, em 2011.

Para Joel Pinheiro, o destaque dado à racionalidade é uma tradição do catolicismo frequentemente esquecida, e que o papa tentou resgatar. "Ele enfatizou a razão como instância de resolução de conflitos numa sociedade plural, e isso tem uma origem bem antiga que remonta a Santo Tomás de Aquino", diz.

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"O relativismo contemporâneo mortifica a razão, porque de fato chega a afirmar que o ser humano nada pode conhecer com certeza, para além do campo científico positivo."

Audiência geral, em 5 de agosto de 2009.

"Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar ‘aqui e além por qualquer vento de doutrina’, aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades."

Trecho da homilia da missa de abertura do conclave, em 18 de abril de 2005.

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"Quando se nega a possibilidade para todos de referir-se a uma verdade objetiva, o diálogo transforma-se impossível e a violência, declarada ou oculta, torna-se a regra dos relacionamentos humanos."

Audiência com os membros da Comissão Teológica Internacional, em 7 de dezembro de 2012.

Bento XVI incluiu definitivamente nos debates eclesiais a crítica ao relativismo que domina a cultura ocidental. Poucos temas ganharam tanto destaque e apareceram com tanta frequência em discursos e homilias quanto a negação da existência de uma verdade objetiva, segundo a definição oferecida pelo próprio papa. Essa posição filosófica não teria causado grandes preocupações ao pontífice se, contraditoriamente, não viesse sendo imposta como uma verdade absoluta, na cultura e na política, afetando vários aspectos da realidade social, inclusive a própria fé, afirmam analistas.

Em abril de 2005, na missa que abriu o conclave da sucessão de João Paulo II, o então cardeal Ratzinger já havia dado pistas de qual deveria ser o maior desafio do futuro papa – tarefa que coube ao próprio Ratzinger. Naquela ce­­rimônia, ele chamou de "di­­­­­tadura do relativismo" a sistemática tentativa de calar os que se opõem à tese de que tudo se reduz a meras opiniões. A expressão se tornou um símbolo de sua luta e passou a ser reproduzida.

Embora à primeira vista o tema possa parecer distante de necessidades pastorais mais práticas, Bento XVI se esforçou para explicar a amplitude das consequências dessa forma de pensar. "Em nossa época parece que o relativismo se coloca paradoxalmente como 'verdade' que deve guiar o pensamento, as escolhas, os comportamentos", disse o papa em uma de suas audiências gerais, em agosto de 2010.

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O editor da revista de cul­­tura e filosofia Dicta&Con­­tradicta Joel Pinhei­­ro explica que a exigência dessa subjetividade seria o motivo pelo qual a Igreja é atacada quando se pronuncia, por exemplo, sobre matrimônio ou sobre a própria fé em Jesus Cristo. "O relativismo admite que há opiniões conflitantes, mas nenhuma delas seria mais verdadeira que outra, e assim todo mundo estaria preso às suas verdades subjetivas", descreve.

Segundo Pinheiro, essa tendência se tornou muito forte na intelectualidade europeia, migrou para a política e passou a ser usada como instrumento para evitar conflitos. No entanto, o que começou como uma forma de propagar a tolerância passou a não tolerar aqueles que não aderem ao imperativo de que tudo é relativo.

Efeitos sociais

Para o filósofo e colunista da Gazeta do Povo Carlos Ramalhete, os efeitos do relativismo não atingem apenas as religiões, mas o próprio valor dado à vida humana, já que ele também dependeria de pontos de vista e, assim, não haveria uma dignidade objetiva do homem. "Se tudo é forçosamente subjetivo, eu posso afirmar que você não tem direito à vida. É o caso do aborto, da eutanásia, dos genocídios", afirma.

Luiz Felipe Pondé, professor de Ciências da Religião da PUC-SP e colunista do jornal Folha de S.Paulo, acrescenta que os danos causados pelo relativismo à família e à própria cultura ocidental justificam a ênfase que Bento XVI deu ao tema, citando o que considera outro ponto frágil do relativismo. "Só os ocidentais são relativistas. Nenhuma das outras culturas que assu­­­mimos como tão válidas quanto a nossa leva a sério essa coisa de relativismo", diz.

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